Em 1936 Erich Maria Remarque lançou um romance que tratava da vida de três amigos após a Primeira Grande Guerra, abordando principalmente as consequências morais e mentais que o conflito teve sobre eles. O nome: Drei Kameraden, o equivalente a Os Três Camaradas no Brasil. Se a Primeira Guerra chocou a opinião pública pelos diversos avanços tecnológicos e militares que tornaram o embate um dos mais sangrentos da história, a Guerra do Vietnã, assombrou ainda mais o mundo por ser o primeiro conflito com televisionamento. Finalmente todos, tanto soldados quanto cidadãos, viram a óbvia crueldade de uma guerra. Décadas depois, Michael Cimino traz a história dos três camaradas para O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978), adaptando o enredo para o controverso conflito na Ásia que recém abalara a moral norte-americana.
As três partes em que o filme é dividido são bem delimitadas. Na primeira temos um grupo de amigos que vive numa pequena cidade industrial do interior dos Estados Unidos. O estranho e quieto Michael (Robert De Niro), o jovem que está para se casar Stevie (John Savage), o folgado Stosh (John Cazale) e Nick (Christopher Walken), que vive uma paixão com Linda (Meryl Streep), com quem pretende se casar assim que voltar do Vietnã. Um típico grupo de amigos interioranos que tem como diversão beber após o trabalho e de vez em quando caçar nas montanhas.
Em seguida uma cena igual a inicial de Apocalypse Now (idem, 1979), de Francis Ford Coppola, com um monte de casinhas sendo explodidas no Vietnã. Em terra, vemos Michael queimando um vietcongue com um lança-chamas e helicópteros americanos sobrevoando o local. Nos helicópteros estão seus amigos Nick e Stevie. O reencontro deles, que parecem vencedores logo é cortado por outro corte seco que já os mostra em cativeiro, na beira de um rio. Ali, seus sequestradores obrigam os prisioneiros a jogarem rodadas de roleta-russa, enquanto apostam. Após sangrenta fuga, os amigos são resgatados, mas durante a operação, Michael e Stevie caem no rio. Stevie cai sobre pedras e perde o movimento de suas pernas, sendo carregado por Michael pelo resto do caminho.
De volta para casa, Michael demonstra estar ainda mais preocupado. Nesse momento entra aquela máxima, é mais perigoso um homem quieto, que pode explodir a qualquer momento, do que um homem que esbraveja e ameaça a todo instante. Dos três que foram ao Vietnã, Michel é o único a retornar. Stevie, sem as pernas e o braço esquerdo, se recusa a voltar a seu lar e fica vivendo numa espécie de asilo para veteranos de guerra. Nick é o que some de vez, se refugiando na clandestinidade de jogos de roleta-russa no Vietnã.
Apesar de serem visivelmente delimitados, não há nenhum tipo de transição entre os atos. Apenas um corte seco, reforçando a ideia de lembrança e consequência de um para o outro. Como se fossem apenas os fragmentos mais importantes da memória, faltando algumas partes que os complementam entre si. Curiosamente, o menor desses atos é justamente o do Vietnã, que liga o primeiro ao segundo, mostrando causa e consequência. O foco fica com o antes, como éramos felizes com a rotina, e o depois, como estamos fodidos por termos sobrevivido.
Em Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008), a diretora Kathryn Bigelow mostra em como a guerra pode ser uma droga viciante, a adrenalina que não deixa o soldado voltar a ser um cidadão comum. De certo modo, a estrutura é a mesma em O Fraco Atirador. Nick, porém não continua jogando roleta-russa pelo vício na adrenalina, mas sim a usa como uma droga que traz um ponto de fuga da realidade e a busca pela morte. Ao continuar se esgueirando pela clandestinidade desse jogo perigoso nas periferias vietnamitas, o jovem nega sua volta à realidade. Assim como o protagonista de Guerra ao Terror, não resta mais nada para ele na vida comum e pacata.
Em toda a mudança que os personagens vivem do primeiro para o terceiro ato, as cenas de caçada são as mais sutis. Porém, são as que mais revelam a mudança em Michael. Com a trilha pacífica e enquadramentos abertos das belas paisagens das montanhas, o antes exímio caçador, agora vacila na hora do tiro. Isso mostra que nem o mais frio dos caçadores passa incólume pelo horror do extermínio.
Um ano antes de Apocalypse Now o mundo já era convidado a adentrar na mente de jovens arrasados pelo Vietnã. Mesmo inferior ao supracitado, O Franco Atirador merece por si só diversos créditos, mas o que fica é o jogo psicológico, o esfregar a crueza na cara do espectador, o “veja só o que fizeram com esses garotos desajustados”. Ao mesmo tempo, o mundo não via ali nenhuma novidade. Sendo a primeira guerra a ser transmitida pela televisão, as imagens chocantes já influenciavam a opinião pública durante o conflito. Mas isso não era o suficiente. Era necessário adentrar nos detalhes do evento e mostrar o horror interno de quem o viveu.
*Texto escrito originalmente para o blog cinealphaville.wordpress.com
bela critica, parabéns.