No futuro descrito por George Orwell em 1984, o homem é fortemente controlado pelo Big Brother. Emulando Estados ditatoriais do mundo real, o escritor inglês demonstrou em seu livro distópico os perigos de uma sociedade altamente controlada através da tecnologia. Em Brazil (idem, 1985), Terry Gilliam parte dos mesmos preceitos de Orwell para construir justamente uma sociedade que chegou ao seu ápice de controle através do movimento contrário, ou seja, uma sociedade que se enrolou em suas próprias burocracias e que, no momento em que o enredo se passa, é extremamente dependente da tecnologia para fazer qualquer coisa.
Sam Lowry (Jonathan Pryce) é um jovem acostumado à burocracia de seu tempo. Ele trabalha em um dos tantos ministérios do governo, que busca controle regrado e nos mínimos detalhes de sua população. Ao contrário de seu chefe, um homem mais velho que parece ter tido a necessidade de se acostumar àquele sistema, Lowry tem facilidade de se encontrar em meio a tanta papelada e meios tecnológicos. Após um engano burocrático e a morte de um cidadão inocente, Lowry precisa achar a família do infeliz para devolver um cheque. Nessa incursão pela periferia da metrópole, – semelhante à descrita por Orwell em 1984, onde não há muita preocupação de controle do governo e os crimes acontecem normalmente nas vielas sujas – o protagonista encontra a mulher de seus sonhos, literalmente, e percebe que chegou o momento de consumar seu amor, que sai do campo do irreal para tramitar na realidade mundana.
Jill Layton (Kim Greist), a mulher dos sonhos de Lowry é, porém, uma terrorista. Mais uma vez temos um roteiro que anda lado a lado com 1984. Na realidade violenta, um grupo de terroristas confronta o mundo controlado através de violentos atentados a bomba. Assim como no romance, o protagonista se vê dividido entre o medo de seguir a amada em sua cruzada suicida contra um sistema controlador e manter seu status quo.
Terry Gilliam é conhecido por tocar seus filmes em ritmo psicodélico, com pitadas de surrealismo. Semelhante a David Lynch, cineasta que se consolidou na mesma época, Gilliam mantém seus filmes no real, mas quando trata dos sonhos viaja a quilômetros de distância, enchendo suas obras de poderosos momentos alegóricos e coloridos. Em Brazil, a realidade é totalmente confusa, com cenários caóticos de prédios toscos e estradas que cortam o deserto, cercadas por publicidades gritantes. Por diversos momentos somos conduzidos também ao refúgio de Lowry, seus sonhos, em que ele se alça sobre a cidade como Ícaro e salva sua bela amada. O colorido se choca com uma metrópole doente e cinzenta, com personagens bizarros e caricatos.
Archibald (Robert De Niro) tem pouca participação aparente na obra. Apesar disso, ele é o cerne de toda a confusão. Ele é o engenheiro que corre em paralelo ao sistema. Interceptando os requerimentos de ajuda da população para consertos de sistemas e encanamentos, ele se atravessa às opções burocráticas e trabalha como uma espécie de free lancer, sem dar resposta aos seus superiores. Por isso é caçado pelo sistema burocrático, que não aceita quem não se adeque a ele.
Desprevenidos podem pensar que o nome do filme tem relação direta com o nosso país, mas isso não fica muito explícito em nenhum momento da obra. Ao longo dos anos teorias surgiram, sendo que uma delas se refere ao nosso Brasil, por ser um destino frequentemente mencionado em filmes da década de 40 e 50. Outra teoria falada é que o filme de Gilliam faz uma referência a Ilha do Brazil, uma ilha fantasma do Oceano Atlântico, comumente mencionada em livros medievais. Apesar dessa última ser bem tentadora, o próprio Gilliam falou: “Port Talbot [no País de Gales] é uma cidade de aço, onde tudo é coberto com pó de minério de ferro cinza. Até a praia é completamente cheia de poeira, é apenas preta. O sol estava se pondo, e foi muito bonito. O contraste foi extraordinário, eu tinha essa imagem de um cara sentado lá nesta praia sombria com um rádio portátil, ouvindo canções latinas escapistas estranhas como 'Brasil'. A música transportou-o de alguma forma e fez seu mundo menos cinza”. E a MPB é de fato a única ligação com nosso país presente diretamente na obra.
Sem deixar o paralelo com 1984, há um final atormentador. Na vertigem ilusória de Lowry, seus sonhos ficam cada vez mais reais e a realidade cada vez mais contraditória. Ao se voltar contra o sistema em nome de seu amor, ele anda à margem da lei. E isso é o que o sistema burocrático não perdoa. O final, que poderia ser ambíguo, não deixa dúvidas da crueldade da lei ao esmagar o marginal.
Os toques de referência são o grande diferencial de Brazil, seja na trilha-sonora e em seu nome de origem controversa, ou em suas ligações com 1984. A grandeza de seu orçamento traduzida em seu relativo fracasso nas bilheterias não afetou a obra, que ganhou status de cult com os anos. Escrachado e eloquente, o que assusta nele, porém, é a sutil aproximação com a realidade.
*Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
Já viu o La Jetée, que deu origem aos 12 macacos?
Já, mas faz tempo. Se não me engano, é do Chris Marker e andou passando esses dias no Telecine Cult, mas não consegui assistir. Quero rever pra refrescar minha memória - que anda bem fraquinha....
É do Marker sim, acho um filmaço. Até por isso fiquei um pouco decepcionado com o 12 Macacos.
Vi no Cinema faz muito tempo. Concordo com o Gian. A obra maior do Gilliam é essa aqui. E La Jetée é superior e muito a "Os 12 Macados".