Michael Moore é um dos cineastas mais importantes desse novo Milênio. Seus documentários ácidos que incomodam muita gente trazem uma luz sobre os sérios problemas da sociedade, nesse caso a americana (mas que também alcançam outros países por tratar de problemas mundiais), e ainda ajudam o gênero a ganhar força no circuito comercial, ainda que timidamente. Moore possui poucos trabalhos de destaque, apesar de ter lançado sua primeira obra relevante em 1989, Roger e Eu. Dois anos antes de mostrar ao público seu documentário mais polêmico que o consagraria de vez, Fahrenheit 11 de Setembro, Moore lançou um filme revelador, corajoso e polêmico, que atinge a população americana de uma forma que só esse diretor é capaz de fazer.
Tiros em Columbine tem como ponto de partida o massacre ocorrido em Colorado, onde dois estudantes mataram doze colegas e uma professora usando armas de fogo e logo depois se suicidaram. A partir do trágico acontecimento, Michael Moore explora o porte indiscriminado de armas por civis americanos, mais especificamente em sua cidade natal, Michigan, onde o diretor declara que é o paraíso dos amantes de armas, o próprio recebeu na adolescência o Prêmio de Atirador da Associação Nacional de Rifles, conhecida como ANR, que tem como presidente o ilustre ator Charlton Heston.
Seria um equívoco correlacionar diretamente o massacre em Columbine com a facilidade dos americanos em obter armas de fogo e munição (e talvez esse seja o único 'apelo' do filme), afinal, no Brasil o porte de armas é ilegal e em 1999 um jovem estudante de medicina entrou em uma sessão de Clube da Luta e saiu atirando, seria algo fácil e perigoso demais. Acredito que o caso desses dois americanos foi algo bem mais particular, mas ainda assim Moore não é de todo infeliz, pois usa esse argumento para a partir dele expandir o assunto.
Depois de comprar uma arma em uma loja como se estivesse comprando uma aspirina, o premiado diretor realiza entrevistas bastante esclarecedoras com civis no que concerne o motivo da legalidade de porte de armas. Um fazendeiro com um olhar alucinado declara que tem o direito de se defender (apesar de nunca ter sofrido nenhum tipo de ataque) e guarda uma Magnum 44 carregada debaixo do travesseiro. Quando Moore o pergunta sobre Gandhi e sua política de não-violência, o homem surpreende quando declara nunca ter ouvido falar dele, o silêncio que se segue é constrangedor. Já um integrante da Milícia de Michigan, uma espécie de polícia marginal que teve como membros dois terroristas que explodiram o edifício federal em Oklahoma, diz que Se você não estiver armado, você não é responsável, alegando que não confia na polícia ou no governo federal e que cada família precisa se defender.
O documentário também explora assuntos concomitantes, como a cultura do medo que é imposta ao cidadão americano e que em parte explica esse fascínio por armas. Os patéticos e inacreditáveis noticiários (e reality shows, como Cops), que parecem ter saídos do seriado Simpsons, noticiam, na maioria das vezes, crimes envolvendo negros (não muito diferente do que acontece no nosso país) e dão voz aos brancos suburbanos (sempre incólumes) que colocam a culpa em algum negro quando são acometidos, ou não, por algum tipo de crime, além de criarem paranóias bizarras, como o medo de abelhas supostamente assassinas. Até mesmo Marilyn Manson foi alvo de acusações absurdas para explicar a violência em Columbine, e o roqueiro faz uma declaração incisiva e certeira ao dizer: É apenas uma campanha de medo e consumismo. Acho que é nisso que se baseia nossa economia, mantenha a adrenalina e as pessoas consumirão, Manson é genial em evidenciar esse relação entre o medo e o consumismo. É claro que tudo piorou depois do 11 de Setembro, tornando o medo uma das maiores pragas do país, e assim Moore chega numa conclusão louvável: como uma população com tanto medo e insegura pode estar perto de tantas armas e munições?
Um paralelo importantíssimo que Michael Moore faz é quando compara os Estados Unidos com o Canadá (algo que ele também fez brilhantemente em seu trabalho mais recente, Sicko - $O$ Saúde). No país vizinho, o porte de arma também é legalizado e a população, que gira em torno de 10 milhões de famílias, possui 7 milhões de armas. Entretanto, os canadenses nunca trancam as portas e a cidade de Sarnia, em Toronto, registrou apenas um crime envolvendo arma de fogo em três anos. Logo, não é apenas o simples fato do porte de armas ser legalizado que explica a ocorrência de tantos crimes na América. Qual a diferença então entre o Canadá e os Estados Unidos? Charlton Heston alega que é por causa do background sangrento do país, mas Moore rebate acertadamente que países como a Alemanha e a Grã-Bentanha tem um passado tão sangrento quanto e mesmo assim o índice de crimes é dezenas de vezes menor. Encurralado e incomodado, Heston parte para a questão da mistura de etnias, o ator toca num ponto interessante, ainda que com um leve tom de racismo. É sabido que os Estados Unidos tem um histórico vergonhoso e recente de segregação racial, esse poderia ser um dos pontos que explicaria esse caráter 'defensivo' da população branca, e talvez a resposta aparentemente simplista e ingênua dada por um estudante canadense, que declara que os americanos devem odiar uns aos outros, não seja tão estúpida assim.
Outro caso mostrado é de uma mãe negra cujo filho de seis anos de idade matou uma colega na escola usando a arma do tio enquanto ela trabalhava num emprego de baixíssimo salário. A mãe trabalha para um programa social do Estado em troca de ajuda financeira. Ela pega um ônibus e demora uma hora e meia para ir e para voltar, ganhando menos que seis dólares por hora e sendo obrigada a se abster da educação do filho. É óbvio que o crime seria evitado se na casa do tio não houvesse a arma. Diferente do Columbine, esse caso pode ser relacionado diretamente com o livre acesso as armas. E que tipo de programa de ajuda aos pobres é esse? É na verdade uma forma de continuar a escravidão e promover a violência.
O documentário é recheado de humor negro (uma característica das obras de Moore), com direito a passagens tragicômicas, desde trechos de filmes e propagandas antigos até um engraçado resumo em forma de animação da história dos Estados Unidos, assim o filme nunca perde o ritmo. Além ainda de contar com uma trilha sonora propositadamente desapropriada para as situações mostradas, como a música What a Wonderful World sendo tocada quando são mostradas cenas de guerras promovidas pelo país. O diretor é mestre em promover a vergonha alheia, deixando seus entrevistados na maior saia justa (algo parecido com o que o programa CQC faz por aqui). Além de Heston, outro 'alvo' de Moore é a relações-públicas do K-Mart, que vendiam balas que foram usadas no massacre em Columbine. Dois estudantes atingidos (um de cadeira de rodas) vão até o hipermercado acompanhados do diretor, mostram os danos causados pelo produto da loja e pedem que parem de vender munições, incrivelmente o pedido é aceito.
No fim, Michael Moore sabiamente não tenta ditar uma resposta única para os problemas dos EUA, mas levanta questões pertinentes para a atualidade, afinal, muitas vezes se aprende mais com perguntas do que com respostas, que podem ser bastante equivocadas se tratadas superficialmente.
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