Apenas na terceira vez que assisti O Sol é Para Todos eu percebi o quão riquíssima é a obra dirigida por Robert Mulligan e estrelada por Gregory Peck. Baseado no romance To Kill a Mockingbird da ganhadora do prêmio Pullitzer Harper Lee, o filme é, acima de tudo, um retrato da vida mostrada pura e simplesmente, sem graves distorções maniqueístas e principalmente, carregada de maturidade.
O ano é 1932, apenas três anos depois da Grande Depressão. Em Maycomb, uma pequena e preguiçosa cidade do Sul dos Estados Unidos, vive Atticus Finch (Peck), um pacato advogado viúvo que não mede esforços para poder servir o povo de sua comunidade afetado pela crise, aceitando até repolho em forma de pagamento pelos seus serviços. Ele tem dois filhos pequenos, a marrenta Scout (Mary Badham) e o esperto Jem (Phillip Alford). Os dois vivem em harmonia, tanto entre eles quanto com o pai, que por alguma razão apenas o chamam pelo primeiro nome. Os dois adoram imaginar histórias sobre Boo Radley (Robert Duvall), um homem que é sabido ter cometido um ato brutal contra o pai anos atrás e agora vive preso na casa da família. Enquanto Scout e Jem estão preocupados em invadir o quintal de Boo, Finch aceita defender Tom Robinson (Brock Peters), um negro acusado de ter estuprado Mayella (Collin Wilcox Paxton), uma branca humilde filha do temperamental Bob Ewell (James Anderson).
O filme foi realizado quando o Movimento dos Direitos Civis para os Negros Norte-Americanos (1955 - 1968) estava no auge. A população negra lutava por reformas na América com o intuito de acabar com a discriminaçãoo e a segregação racial que tanto manchou o país. Na época em que o filme se passa, ainda se erguendo da crise e sofrendo com a ascensão de regimes totalitários, o preconceito era palpável, explícito, a ponto de um negro ser motivo de riso e piada se sentisse pena de uma branca, por mais miserável que ela fosse, o simples fato de ser branco já era um ponto a favor de alguém.
Finch tenta manter todo o ódio e preconceito longe dos filhos, que só começam a tomar consciência da dimensão da situação quando o pai fica na frente da prisão onde Robinson está mantido para evitar um linchamento por parte dos habitantes da cidade. A situação é bastante confusa para Scout e Jem, que ao mesmo tempo em que conhecem a gravidade do preconceito, são parcialmente educados pela rígida porém adorável Calpurnia (Estelle Evans), a empregada negra da família. É interessantíssima a liberdade que Finch dá a Calpurnia para ensinar algumas lições aos seus filhos, mostrando o seu caráter desprovido de preconceito.
Além de lidar com a confusão de sentimentos em relação aos negros, Jem e Scout também repensam sobre Boo. Quando os dois encontram miniaturas suas feitas por Boo numa casca de árvore perto da casa dele, elas começam a imaginar como é Boo na verdade: seria realmente um louco psicótico como todos o pintam ou um ser humano tão íntegro quanto é capaz de ser? Tanto o caso de Tim Robinson quanto o misterioso Boo são o ponto de partida para o despertar das crianças para um conceito maior de ser humano e o que implica ser 'diferente' para uma sociedade sustentada pela ignorância.
Na bem estruturada sequência julgamento, a inocência de Tim Robinson é evidente, e o discurso de Atticus Finch é bastante claro quanto as motivações de levar aquele negro a júri popular em uma comunidade tão frágil. Não havia nenhuma comprovação médica de que Mayella teria sido estuprada e seu depoimento, oscilando entre a sinceridade e o medo, apenas comprova a inocência do homem.
As atuações são outro ponto forte da obra. Brock Peters apresenta uma das performances mais intensas já vistas e Gregory Peck, que levou o Oscar de Melhor Ator, faz de Atticus Finch um homem contido e conciso, nunca se exaltando, nem quando leva uma cusparada na cara de Bob Ewell, limitando-se a pegar um lenço para limpar o rosto, tão incorruptível que seu personagem foi eleito o maior herói do cinema americano. As crianças também estão muito bem, Mary Badham dá vida a uma das crianças mais adoráveis do Cinema, e destaque também para Paxton, que interpreta Mayella de uma forma vigorosa e bastante convincente. O Sol é Para Todos é com certeza um filme de atuação, além ainda de contar com a mais bela fotografia em preto-e-branco já concebida e uma excepcional trilha sonora, que remete a uma tímida tristeza.
A película de Mulligan é uma obra completa, não se fazendo uso de situações ou momentos forçados em seu desenrolar, muitos podem achar o filme chato justamente por esse falta de 'tensão', se existisse, seria desnecessário e criaria uma falsa impressão de acontecimentos gratuitos em um ambiente inóspito para tal empreitada, e isso apenas comprova a sua maturidade. Os personagens passam suas vidas da forma mais natural possível, verão após verão, sem pressa, na poeirenta cidade de Maycomb, vivendo o que tiverem que viver.
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