Parafraseando o crítico Pablo Villaça, “CISNE NEGRO é o que o clássico OS SAPATINHOS VERMELHOS seria caso fosse dirigido por David Lynch e David Cronenberg em uma parceria inédita.” Pois realmente não há uma maneira melhor para descrever a sensação que fica ao subir dos créditos, afinal todos os elementos típicos das obras dos cineastas norte-americano e canadense estão presentes neste que é um dos melhores trabalhos do diretor Darren Aronofsky.
Escrito a seis mãos por Mark Heyman, Andres Heinz e John J Mclaughlin a partir de estória criada por Heinz, o roteiro nos apresenta a Nina Seyers (Natalie Portman), uma obcecada e retraída bailarina que está para disputar a tão sonhada vaga de dançarina principal de uma renomada Companhia comandada por Thomas Leroy (Vincent Cassel) na encenação da famosa obra O LAGO DOS CISNES. Cada vez mais sufocada pela super proteção de sua mãe (Barbara Hershey) e pela possibilidade de ser passada para trás por sua colega de trabalho Lily (Mila Kunis), Nina vai gradualmente sendo tragada por seus próprios conflitos internos.
Cineasta sempre competente, Aronofsky mais uma vez apresenta um trabalho corajoso e extremamente eficaz ao manter sua câmera sempre próxima à sua protagonista – repetindo a estratégia vista em seu igualmente fantástico O LUTADOR – o que nos aproxima consideravelmente das agruras internas de Nina, ao mesmo tempo em que confere um ar semi-documental ao projeto. Optando também por inúmeros efeitos visuais (em sua maioria imperceptíveis, o que comprova sua eficácia), Aronofsky torna a experiência ainda mais forte ao confundir o espectador, misturando delírios, paranóias e toda a pressão diante de uma preparação tão intensa e desgastante.
Outro fator interessante sobre a direção de Aronofsky reside na sua atenção dedicada aos detalhes, como constantemente enquadrar espelhos ao redor da protagonista (algo importantíssimo na obra), ou a dedicar alguns bons minutos ao apresentar pequenas trucagens do universo da dança, como os exaustivos alongamentos, o calçar das sapatilhas (com suas fitas e curativos) ou as infindáveis repetições de coreografias. Sua direção, vale dizer, se torna um competente exemplar dessa nova onda de câmera na mão, muito comum nos dias de hoje, mas que raramente gera um registro realmente interessante – técnica esta herdada de vários movimentos artísticos como o Dogma 95, a Nova Hollywood e a Nouvelle Vague.
Outro ponto fundamental na narrativa é o papel do design de produção e dos figurinos. Se no design de produção a obra é enriquecida pelas mais variadas dicas sobre o que irá ocorrer na história (as cores preto e branco sempre em conflito, os bichos de pelúcia no quarto de Nina e, novamente, a quase onipresença dos espelhos), os figurinos servem como meio perfeito para delinear a trajetória de sua perturbada protagonista, basta observar que no início vemos Nina sempre de branco, rosa ou cinza, e seus “adversários” e/ou “duplos” sempre com alguma peça preta (incluindo sua própria mãe). Conforme avança a narrativa, Nina aos poucos se deixa contaminar por esse “lado negro” e, como na peça que tenta retratar (onde o bruxo Rothbart amaldiçoa a pobre Odette), temos a sexualidade e a paranóia como elementos de transição brutal – neste caso, podemos interpretar Thomas como sendo a representação do feiticeiro.
Igualmente bela é a fotografia de Matthew Libatique que opta por mergulhar a protagonista em constantes ambientes escurecidos e granulados, salientando ainda mais as incertezas de Nina e a influência que Lily, Thomas e os outros exercem sobre a jovem. Mas a maquiagem é a que merece aplausos não só pela verossimilhança dos machucados, mas por ser responsável por alguns dos momentos mais angustiantes de todo o longa (para não estragar o impacto, apenas digo que envolve tesouras, unhas, cutículas, etc).
Então chegamos à narrativa propriamente dita. E é importante informar que estes próximos parágrafos só devem ser lidos por quem já assistiu ao filme. Primeiro de tudo, um dos argumentos típicos dos detratores deste filme é o fato de ele “não ser realista”. Ora, nenhum filme – ou melhor, nenhuma obra de arte – deve necessariamente ser realista para que cause impacto. Não existe nenhuma regra preestabelecida que obrigue os artistas a realizarem um filme que tenha 100% de compromisso com a realidade. É tão comum ver certas pessoas culpando a rica obra de David Lynch ou Luis Buñuel por estas não seguirem os padrões ditos “comuns”, mas estas mesmas pessoas elogiam clássicos como OS DEZ MANDAMENTOS ou O MÁGICO DE OZ – é claro que uma menina engolida por um tornado ou um mar que se abre são realistas, né?...
Pois bem. Para as pessoas que estão livres de julgamentos mentalmente estreitos, CISNE NEGRO (assim como várias outras obras como ANTICRISTO, ESTRADA PERDIDA, AMNÉSIA, etc.) se mostra uma experiência instigante e muito rica. A começar pela teoria dos espelhos:
Durante cerca de 60% do filme temos um “duplo” de Nina refletido em algum lugar, seja no metrô, nos espelhos da sala de ensaio e da casa da protagonista ou em qualquer outra superfície refletora. Nina gradualmente se deixa assombrar por seu lado negro, começando por pequenos delays de movimento de sua versão macabra (em certo momento o reflexo da garota simplesmente não realiza determinado movimento), para logo em seguida as pessoas a sua volta se transformarem nela própria – a cena em que Nina segue por um corredor ao voltar de um ensaio, ou a cena em que a garota pensa ter visto alguém muito parecida consigo em um vagão do metrô. Ainda que esta sombra se manifeste gradualmente na vida da protagonista, ela permanece inofensiva.
O que faz Nina mergulhar de vez nesse mar de insanidade e paranóia que liberta seu lado “cisne negro”?
-Começando pelas sugestões de Thomas que faz com que a garota descubra sua própria sexualidade, Nina gradualmente se descobre como mulher e, ainda que doente devido aos seus constantes delírios, se torna independente e mais “ativa”, sedutora.
-Outro ponto é a bulimia da garota. Nina aparece vomitando em mais de uma cena, o que sugere que a garota seja portadora desse distúrbio – algo que agravaria ainda mais sua condição mental.
-Outro agravante é a presença possessiva de sua mãe. Nina representa o que sua mãe queria ser, logo a mulher reflete nela suas próprias alegrias e frustrações. E seu obsessivo cuidado com a fragilidade da filha é mais um fator que pesa muito na futura esquizofrenia de Nina. Alias, vale apontar que a mãe de Nina pode ser encarada como uma das faces de Rothbart, o mago que amaldiçoa Odette em O LAGO DOS CISNES.
-Mas o principal fator é a presença de Lily. Desleixada no quesito técnica, Lily compensa na dança com seu incrível carisma e desenvoltura, encantando a todos a sua volta – algo que Nina tenta buscar através da perfeição. Enxergando em Lily o que não possui, Nina passa a ter delírios com a garota, primeiro encarando-a como rival, depois como amante, para logo em seguida encará-la como uma ameaça verdadeiramente mortal.
Com todos esses elementos somados, e mais vários outros que não citei, Nina perde completamente a capacidade de raciocinar e liberta seu lado sombrio que culmina em uma tentativa (bem sucedida?) de homicídio no hospital quando visitava Beth, ex-bailarina principal de Thomas, símbolo de perfeição técnica e objeto de obsessão de Nina. Aqui cabe outra pergunta: Nina realmente atacou Beth? Ou Nina sequer esteve no hospital?
Com o acúmulo de todas essas pressões, Nina ataca sua(s) rival(ais) em uma tentativa de manter-se no controle, mas já é tarde. A garota mata “Lily”, atirando contra um espelho e depois esfaqueando-a com um enorme caco do mesmo objeto. Neste momento, simbolicamente, A Nina que habitava o outro lado vem para o “nosso mundo” e possui por completo o corpo da protagonista, resultando no tão esperado número de dança de Odille. Natalie Portman consegue, graças ao seu imenso talento, representar de maneira brilhante a transição da Nina/Odette para a sensual Nina/Odille.
Com um final espetaculoso, CISNE NEGRO encerra sua teoria do duplo com Nina sangrando pelo ferimento do caco de espelho que ela, na verdade, fez em si mesma (qualquer psicanalista teria orgasmos com isso). Mas mais do que constatar o triste destino da garota, que sofreu de uma doença mental séria, Aronofsky conclui o filme com uma frase que sintetiza perfeitamente a trajetória cinematográfica que realizou nesta obra:
“Foi perfeito.”
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