“Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.”
(Liev Tolstói)
Você abandonaria uma vida cômoda em um apartamento bem mobiliado, tendo um emprego com um bom salário para viver em um mausoléu desocupado e deteriorado, localizado em um bairro periférico de ruas soturnas? Deixaria uma vida calma, vazia e cheia de opulências para lutar em porões escuros e a partir daí desenvolver uma nova visão sobre o mundo? Creio que poucos realizariam esses atos impensados em um mundo moderno, onde os interesses individuais subjugam o interesse coletivo. Mas o personagem de Edward Norton o fez e teve sua vida radicalmente mudada. Se me permite uma opinião... Tente, ao menos, durante o filme se abster de tais coisas para sentir a sensação de estar no “fundo do poço”.
Um homem com distúrbios do sono, extremamente perturbado e debilitado psicologicamente resolve freqüentar reuniões de pessoas acometidas por doenças graves - os tradicionais grupos de apoio. Inicialmente tudo fluía bem, até seu sono estava sendo normalizado, porém a presença de uma figura esquálida de cabelos negros e desgrenhados sempre com um cigarro a mão e possuidora de uma filosofia de vida um tanto suicida (ao zombar da morte sob alegação de que poderia vir a morrer a qualquer hora) chamada Marla Singer começa a trazer uma certa desordem para a pouca organização que o protagonista estava aplicando a seu sono e a sua vida.
A participação em grupos de apoio fora uma estratégia inicialmente adotada apenas para presenciar o real sofrimento de perda materializado em pessoas que se viam assoladas por violentas moléstias que as marcavam e segregavam-nas da sociedade. Porém, por mais estranho que pareça, foi rodeado por esses desesperados que ele encontrou um pouco de paz de espírito.
Dentro dos grupos, ele encontrava pessoas dispostas a ouvir de verdade suas amarguras (não apenas escutar, mas também compreender e passar-lhe uma mensagem de conforto), por isso aquele momento funcionava quase como uma válvula de escape de sua realidade. O protagonista literalmente “expulsa seus demônios” ao chorar, purifica sua mente ao revocar à consciência os estados afetivos recalcados para aliviar-se dos desarranjos físicos e mentais, ou seja, tudo isso funciona como uma verdadeira catarse.
Como o sono é incerto, o protagonista vivencia uma situação similar ao transe; ele cochila durante o dia e quando acorda não sabe o que fizera ou o que acontecera antes do sono. Ele passa a confundir realidade com um sonho ou devaneio, este fato me lembra um questionamento proposto por um filósofo chinês cujo nome me foge a mente... talvez seja Tchuang Tsu: Sonhou uma vez que era uma borboleta e, após ter acordado perguntou se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que estava nesse momento a sonhar que era um homem.
Porém o vazio existencial do protagonista não é preenchido, por isso ele começa a nutrir uma vontade de evasão para outro lugar, outro momento e até para ser outra pessoa. A partir daí, a figura de Tyler que antes apenas “piscava” em momentos de seu cotidiano, agora começa a se materializar e ganhar espaço na vida do protagonista.
Este cria um alter-ego carismático que representa tudo o que sua existência mesquinha jamais alcançaria. Tyler é o tipo de pessoa que mesmo fazendo algo errado ou aparentemente non-sense, sempre apregoa uma espécie de ensinamento que nos faz pensar e refletir nossas escolhas e valores (cujo alvo se encontra tanto na figura do personagem de Norton quanto nos espectadores).
“A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um amigo é o nosso delator.”
(Friedrich Nietzsche)
Esse alter-ego, inconformado com a criação de valores da sociedade, é capaz de lançar uma cadeia sob as mil cervizes do monstro a ponto de unificar os objetivos da humanidade, tornando-os uno.
“Se falta objetivo à humanidade, não é porque ela mesma ainda não existe?”
(Friedrich Nietzsche)
Talvez Tyler Durden venha a ser uma espécie de “parteiro” de idéias (fazendo alusão ao método indutivo chamado maiêutica bastante utilizado na filosofia de Sócrates), pois através de seu método (Clube da Luta) ele oferece uma oportunidade às pessoas de “acordar”, “abrir” suas mentes para que suas idéias sejam paridas através de uma reflexão própria polarizada pelos conceitos de Tyler que visam a superação do amor a opiniões sem reflexões e a transposição da conduta de ovelha. Tudo isso para poderem vislumbrar a realidade de um modo diferente, expurgando de suas vidas valores consumistas. É nesse momento que ele critica a coisificação do homem, que se utiliza do consumismo como uma maneira de inserção em uma sociedade idiota que o reduz à apenas meros compradores dominados por suas coisas.
“Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a pequena pobreza!”
(Friedrich Nietzsche)
Esse procedimento nem sempre é fácil, algumas pessoas podem levar meses, anos e até a vida inteira para despertar do “sono” imposto por nossa sociedade alienada (que despreza o intelectual, valorizando apenas o fútil) e, que fazemos questão de segui-los sem titubear de forma um tanto letárgica. Por isso os novatos teriam de, em sua primeira vez no clube, participar das lutas (fazendo alusão a 8ª regra, com certeza a mais importante, cujo enunciado é: “Se essa é a sua primeira noite no Clube da Luta, você tem que lutar.”), para que naquela noite acontecessem suas libertações e o nascimento das idéias, tal como ocorreu com o personagem de Norton ao levar o primeiro soco de Tyler (Nós conseguimos até ouvir os seus batimentos cardíacos no momento, como se ele começasse a viver a partir daí).
Primeiramente, Tyler propõe revoluções morais individuais como objetivo de cada participante “parir” suas próprias idéias. Após a conclusão dessa importante etapa, os membros recrutados por Tyler para compor seu exército deveriam se unir em uma empreitada mais ampla e abrangente que culminaria em uma revolução violenta (Projeto Destruição).
“Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta.”
(Carl Jung)
E é por isso que o filme se torna diferenciado de um discurso panfletário, pois ao invés de criticar apenas a sociedade, critica com muito mais severidade e aspereza o indivíduo que se submete a tais valores que lhes são impostos desde o primeiro contato social.
Tyler Durden é o papel que muitos almejam, mas poucos conseguiriam executá-lo com tanta destreza, personalidade e atitude como Brad Pitt o fez. Em sua atuação muito se deve a David Fincher que literalmente “sugou” os atores para obter suas melhores atuações, porém o talento de Pitt não pode e não deve ser discriminado ou menosprezado, pois em “Clube da Luta” ele mostra todo seu carisma e habilidades em frente à câmera.
Muito se fala da importância do personagem de Pitt, mas, na verdade, sem a presença do personagem de Norton, nada existiria. Sua atuação é incontestável ao construir um homem vazio e aparentemente sem qualquer indício de possuir um nome (por isso vou chamar-lhe de protagonista) que buscava em marcas famosas e em compras desnecessárias, uma maneira de suprir um vazio interior. Essa ausência de nome além de refletir uma extrema falta de individualidade do personagem, principalmente suscita a intenção do autor de construir um papel, que pode ser ocupado por qualquer pessoa da sociedade. Não sei se me explico bem, mas o personagem de Norton é uma metáfora, pois alegoriza as pessoas que mesmo não sendo loucas – e, diga-se de passagem, nem o protagonista ostenta tal alcunha – imaginam-se de uma forma diferente, fazendo coisas diferentes, principalmente quando se encontram sozinhas, ou seja, acabam criando um alter-ego que representa e simboliza seus desejos mais primitivos que normalmente são sobrepujados por uma imagem pública passada ao mundo, fruto de seu super-ego.
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
(Friedrich Nietzsche)
Não sei ao certo quais os motivos ou razões que levaram o protagonista a tal discurso, talvez a sua própria condição de solidão o tenha possibilitado entrar no mérito de questionar a organização do sistema e também de se aprofundar nas conversações de seu Eu (Protagonista) com o Si - mesmo (Tyler), já que não possuía amigos e seus contatos sociais ocorriam em uma escala reduzidíssima. Fato este que destoa de uma cena em que o protagonista se encontra em uma sessão de meditação em um grupo de apoio, e nesse momento de desprendimento, sua força animal lhe é revelada: o pingüim – símbolo da vivência em sociedade.
O Projeto Destruição deve ser entendido como a etapa mais evoluída para os planos de Tyler, iniciados com o Clube da Luta. Planos estes, que nitidamente se embebedam em idéias anarco-primitivistas cujo alvo principal de suas críticas reside na origem e no progresso autodestrutivo da civilização. Tyler busca o retorno a meios “não-civilizados” de vida (“Rewilding” – retorno a um estágio natural) através da desindustrialização, abolição da hierarquização do trabalho, o abandono da tecnologia e o desprezo pelo consumismo. Todos esses planos nos são apresentados pouco antes do alter-ego desaparecer da vida do protagonista, nesse momento Tyler profetiza um futuro primitivo onde as pessoas caçam alces nas florestas do Grand Canyon e nas ruínas do Rockfeller Center, elas usarão roupas de couro que vão durar a vida inteira, vão escalar o Sears Tower e ver outros homens secando charque nas pistas de alguma auto-estrada abandonada.
“O homem pode viver 100 anos na cidade sem perceber que já está morto há muito tempo.”
(Liev Tolstói)
O repudio a domesticação do homem é uma característica intrínseca ao discurso de Tyler. Para ele, a domesticação é o processo utilizado pela civilização para doutrinar e controlar a vida de acordo com sua lógica alienante. E por isso tenta a todo custo desvencilhar o homem deste processo que o aprisiona e o cego perante os problemas desse modo de vida falido.
David Fincher deixa de lado toda a pompa de cenários luxuosos, ricos e multicoloridos para ambientar seu filme em lugares lúgubres, nebulosos e sujos, bem ao estilo underground. Isso mostra a intenção do diretor em retratar um submundo marginalizado que tem em porões úmidos e sombrios, o palco para estranhas reuniões, onde em meio a gritos, homens descalços se digladiam ao desferir golpes desajeitados (como se nunca houvessem lutado) formando um balé disforme. A fotografia monocromática, carregada em tons cinza e negros, é quebrada apenas pelas cores vivas das roupas extravagantes de Tyler.
O modo como a produção se encerra é um espetáculo a parte. Esse grande desfecho nunca pode ser encarado como algo fantasioso que foge aos fatos apresentados na narrativa, pois o diretor salpica “chaves” capazes de decifrar o mistério e antecipar o clímax. Por isso o final torna-se majestoso, pois ao revermos o filme, conseguimos claramente encontrar essas pistas e perceber o quão bem pensada e estruturada é esta obra-prima do cinema pós-moderno.
“Clube da Luta” é um filme que, tanto hoje quanto na sua estréia, foi bastante incompreendido pelos espectadores, pois poucos tentaram se abster dos sentidos para ler nas entrelinhas a verdadeira mensagem por trás das lutas. Prova disso é a indicação ao Oscar apenas na categoria efeitos sonoros. Com tanto conteúdo para ser explorado, a equipe do Oscar reparou apenas em tais efeitos.
O filme prega um repensar sobre nossa realidade, pois todo sistema social no qual o homem moderno se baseia, é na verdade uma “realidade artificial”, um sistema que não é auto-sustentável, pois o isolamento ideológico relativamente à natureza progride para a auto-destruição.
Enfim, cavalheiros, bem vindos ao Clube da Luta.
“Aprenda a viver, descanse quando morrer. Tudo que você precisa está dentro de você”
(Tyler Durden)
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