‘’Alimente-as e comerão até explodir’’.
Um engano pegar ‘’Dogville’’ para ver como um simples filme de entretenimento. Logo nos primeiros momentos, somos apresentados a uma obra sem cenário, sendo as casas definidas por riscos de giz no chão, um fundo preto, e a única indicação de mudança de tempo e clima é a luz artificial, que se alterna ao longo do filme. Há uma narração rolando na voz de John Hurt, o que dá um toque um tanto fabuloso, diga-se de passagem, aliado a uma música totalmente acessória, que não se destaca em nenhum momento do filme. Em muitos, esse impacto inicial causa uma estranheza, outros ficam fascinados pela ausência de cenário, enfim se deparam com um dos filmes mais complexos e pode-se até dizer, humano, dos últimos tempos.
É válido, antes de mais nada, traçar um breve perfil de Lars Von Trier, um diretor influente e bastante polêmico. Junto com seu conterrâneo Thomas Vintenberg, fundou o projeto ‘’Dogma 95’’ um dos movimentos artísticos mais importantes desde a Nouvelle Vague. Através de seus tópicos tinha como objetivo combater a ‘’cosmetização’’ dos filmes, se opondo assim ao cinema como obra de arte. O projeto, radical, possui uma série de restrições que devem ser seguidos para que o filme receba o certificado Dogma 95 (exibido no começo de todo filme do movimento), tais como a restrição às técnicas de filmagens, só podendo ser usadas as câmeras de mão, não uso de iluminação artificial, restrições quanto à temática do filme, etc.
Em ‘’Dogville’’ nota-se claramente a influência do Dogma 95 na notória ausência de cenário e de objetos, que só são identificados pelos efeitos sonoros. Trier tenta mostrar que, para um filme ser bom não são precisos grandes recursos, apenas como saber transmitir a mensagem desejada. Talvez tudo isso crie um abismo entre o espectador e a obra, pois gera bastante incompreensão e desconforto em certos momentos, mas o enfoque mesmo está no desenrolar da história, principalmente nos diálogos e nas interpretações.
Basicamente, Grace chega à pequena cidade foragida de gangsteres e procura abrigo nesta. Tom a encontra e a acolhe, invocando todo o altruísmo dos habitantes da cidade para que estes aceitem a pobre foragida. A forasteira ofereceu ajuda braçal em troca do acolhimento dos cidadãos, e é a partir daí que a trama se desenrola. Os habitantes inicialmente não precisavam da ajuda de Grace e ao serem interpelados por ela não sabiam o que designá-la para fazer. Vivia-se muito bem sem ela, mas logo começaram a arranjar trabalhos que antes eram considerados desnecessários de serem feitos apenas para ajudá-la.
No entanto, o que era para ser altruísmo se torna exploração da pior estirpe. Dogville mostra as suas garras, e os cidadãos começam a exigir cada vez mais de Grace. O diretor mostra uma visão bastante crua sobre a natureza humana. Até que ponto o ser humano consegue conter a sua vontade de poder sobre o outro para parecer cordial e gentil? É notório como as pessoas deixam de pedir a Grace favores e começam a vociferar ordens e agressões verbais. As personagens, antes gentis, deixam finalmente suas máscaras caírem e mostram como são em sua forma mais pura, sem hipocrisia e rodeios. Será mesmo a natureza humana tão egoísta e instintiva como mostrada no filme ou são as circunstâncias que fazem com que o ser humano se corrompa?
Interessante ressaltar que cada personagem da cidade possui uma peculiaridade, na qual Grace tem que se esforçar para contornar e ajudar da melhor forma possível, como a mulher que não consegue ir ao banheiro sozinho, o homem que possui dificuldade de estudos e cego que se recusa a admitir sua deficiência. Todos os atores tiveram que usar todo o seu potencial para prender o espectador junto à história, e a ausência de cenário fez com que toda a atuação soasse como um grande teatro, o que proporciona uma experiência única.
Provavelmente é um dos filmes que mais dividiu opiniões ultimamente. Há quem odeie ‘’Dogville’’ por achar pretensioso quanto ao seu experimentalismo. Particularmente acho um belo tratado sobre o ser humano e toda a sua meticulosidade, mostrado de uma forma tão direta por Lars Von Trier que é difícil, ao descerem os créditos, não parar durante um tempo e refletir sobre o que acabou de ser visto. Imperdível.
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