É bom dizer, logo de cara, que Zodíaco rejeita qualquer encenação protocolar. Abraça, pelo contrário, uma postura muito louvável, aquela que não se finda na mera retratação. Sabe-se que estamos diante de um filme baseado em fatos reais. Também é vero que o cineasta responsável pela obra é ninguém mais, ninguém menos que David Fincher. O casamento entre o olhar autoral de Fincher e a história verídica não se limita a colocar em tela, pela lente cinematográfica, atores proferindo fielmente palavras arquivadas. Já sabemos onde procurar sobre o serial killer que aterrorizou o estado da Califórnia por anos. Uma rápida pesquisa e voilà! Mas, para todos os efeitos, situemos aqui o conto que Fincher irá nos apresentar, por intermédio de decupagem precisa, e com claro objetivo. O de não deixar espectadores – dos mais casuais aos cinéfilos – passarem incólumes.
Fincher abre com uma tomada noturna. Notamos a escuridão da noite em contraste com a luminosidade dos fogos de artifício que pintam o céu, anunciando uma data tão especial. É 4 de julho de 1969 em Vallejo, cidade californiana de médio porte. A câmera sugestiva do diretor logo dá as caras. Colocada dentro de um carro, nos insere na mesma perspectiva dos passageiros que se encontram no interior do veículo. Dirigindo está uma moça jovem, Darlene Ferrin, enquanto que no banco ao lado está o namorado dela, Michael Renault Mageau. Os dois resolvem estacionar em local ermo, ainda que habitualmente frequentado por casais enamorados em busca de privacidade. Falo mais especificamente de um região situada próxima ao Blue Rock Springs Park, parque visado pela tranquilidade e pela distância do caos urbano, um local para fazer de tudo, desde contemplar a natureza até trocar carícias em meio ao silêncio reconfortante. Um outro carro, em postura ameaçadora, se aproxima e o condutor para como se pretendesse estudar aqueles dois jovens. Ameaça ir embora, mas faz o retorno pela estrada de terra, desembarca e, sem qualquer cerimônia, alveja dois indivíduos indefesos. O som de uma ligação anônima para a polícia irrompe. O autor do crime, ele próprio, comunica seu ato vil com frieza tamanha e toques de sadismo. O cartão de visitas de Fincher é um pé na porta se usarmos de eufemismos. A real mesmo é que é uma patada de elefante. O efeito sísmico desse estrondo repercutirá até anos depois de onde partimos. Eis que começa a caçada e a tentativa – com “T” maiúsculo - de decifrar elementos que vão muito além da cena do crime.
O que vem imediatamente a seguir ao homicídio na reserva natural é, de fato, uma progressiva avalanche. Não daquelas que destroem, mas que certamente agregam, especialmente ao bom cinema (lembre-se que este é um conceito subjetivo), aquele que se mostra uma verdadeira aula sobre as múltiplas experimentações fornecidas pelo e para o audiovisual. Toda a investigação acerca das famosas cartas em código, enviadas pelo tal Zodíaco ao principal jornal de São Francisco, encontra sublime cadência no roteiro de James Vanderbilt. Filme tinha tudo pra ser formulaico. Felizmente, não segue a cartilha batida do gênero suspense. E é justamente trabalhando nessa verve dramática com um pé na vibe assustadora que a obra ganha corpo. A montagem opta por abarcar vários anos de investigação e cobre o ínterim pretendido com maestria. O peso do tempo é fatal aqui. Um salto temporal atrás do outro. Meio genial como Fincher projeta a angústia desse passar de horas, dias, meses e anos tanto em cima de quem assiste quanto nas costas daquele que representa a obsessão – notadamente a personagem do Gyllenhaal. O assassino está à solta, o medo estabelecido. Qual será a próxima cartada? Será que na manchete do dia seguinte mais uma ameaça estampará a capa dos jornais?
Fincher dimensiona, de maneira inteligente, uma situação que, per se, carrega toda uma dramaticidade. Ele praticamente cria um antídoto pra filmes de perseguição a criminosos de renome, sejam eles substrato da própria realidade para embasar argumentos de roteiro, a exemplo de um Ted Bundy da vida, ou produtos intrínsecos à ficção, como o inesquecível Hannibal Lecter, com seu olhar penetrante e sua índole manipuladora. Em várias passagens o diretor consegue demonstrar a urgência latente e entremeada – seja no editorial do jornal, na delegacia ou na casa do cartunista obcecado – sem aparentar-se célere, sem objetivar ação onde não é pra ter correria. É calcada nos diálogos, na queima lenta – mas nunca morosa - e no dinâmico trabalho feito na ilha de edição que a coisa vai fluindo. E os diálogos aqui são a grande força motriz. De início, eles são aparentemente cansativos, mas com poucos minutos percebe-se que não há verborragia nem didatismo. Boas linhas de conversa são estabelecidas entre três personagens – enquanto pilares do jogo fílmico e ficcionalizante daquele assombroso ato extradiegético no qual o filme baseou-se - a saber o Dave Toschi, detetive sapiente, Robert Graysmith e Paul Avery, manejado por um Robert Downey interpretando a si mesmo. Defeito do filme? Vejo mais como contraponto à seriedade e à empreitada a princípio desengonçada do Robert Graysmith como um homem dos desenhos que mergulha na investigação do Zodíaco como se esta fosse um hobby alucinado.
No que concerne aos aspectos técnicos, Zodíaco se sai perfeitamente bem. Falar da cinematografia é chover no molhado. Já falar da direção... Bom, esta é cheia de nuances. Ora Fincher faz tudo parecer um thriller jornalístico à Spotlight, ora nos surpreende com sequências soturnas como na memorável cena do porão. Ali temos um filme de terror à parte. Aliás, tomando por base um olhar holístico, Zodíaco é um filme de terror nas entrelinhas. É axiomática a ausência de sustos, mas o temor é constante. A figura do serial killer, enquanto polivalente, assume aqui várias formas, camuflando-se como um fantasma nos mais diversos ambientes. A casa de Toschi – Mark Ruffalo em estado de graça – sendo constantemente interpelada pelas investidas incessantes do Jake Gyllenhaal, o telefone de Graysmith que não para de tocar no meio da noite, o filho que vê o pai hipnotizado diante da TV quando esta exibe uma ameaça do serial aos ônibus escolares. E, no fim das contas, as soluções não são apresentadas.
São tantas as batidas de cabeça da polícia, os encontros e desencontros no recorte temporal que perpassa décadas, que Zodíaco só mostra o quanto é um filme que se pretende um grito preso na garganta. A investigação ora parece se aproximar de um desfecho, ora mostra a ineficácia e a falta de logística por parte dos detetives envolvidos no caso. Uma sucessão de erros num filmes que praticamente não possui erros. Fincher destrincha até o osso as possibilidades imagéticas e narrativas que a história de base fornece. Mas o filme não se limita à estética e à montagem perfeitas. A câmera de Fincher, inteligente que só, aguça e testa nosso limiar de curiosidade. É paradoxalmente linda e frustrante a experiência de presenciarmos, enquanto testemunhas oculares, os crimes no filme sem nunca podermos observá-los de maneira nítida e distintiva. A crueldade das facadas no lago, a abordagem sinistra na rodovia, o tiro no táxi. Em todos esses momentos, ou vemos um enquadramento tendo o Zodíaco como foco, mas da cintura para baixo, ou vemos o mesmo encapuzado. Ou, ainda, não vemos quase nada de suas feições, dado o elemento a ofuscar sua face, quer seja um breu, uma sombra... Em todas essas passagens, a trilha sonora, nunca intrusiva, dá o tom sutilmente. Nunca se apresenta deslocada ou em tom escalafobético.
Impressiona, também, a performance de alguns intérpretes. Concomitantemente dedo do criador (que Fincher é ótimo diretor de atores ninguém tem dúvida) e mérito do elenco. Para efeito de curiosidade, o cineasta chegou a irritar alguns nomes – verdadeiras figurinhas carimbadas - como Gyllenhaal e Mark Ruffalo de tanto repetir algumas tomadas em busca da perfeita. O resultado exímio atingido certamente valeu o esforço e o eventual desgaste nos bastidores. Digo isso com segurança, pois, mesmo com o retumbante fracasso nas bilheterias, Zodíaco mostrou como Fincher é hábil em manter o ritmo lá em cima mesmo num filme de aproximadamente 2 horas e 45 minutos. É um filme que talvez perca o compasso em seu miolo com um ou outro pequeno excedente que poderia ter sido aparado. Mas que exercício fílmico instigante e motivador para qualquer amante do cinema é esse... Gêneros – tais quais o policial, o do suspense e o dramático – fundem-se como nunca. Êxito tamanho que nenhum resultado ruim nas bilheterias – a saber, aproximadamente trinta milhões de dólares arrecadados à época – poderá apagar. Filme que resiste ao tempo e que envelhece como vinho, se é que podemos apontar algum traço de envelhecimento – atento que debruço sobre um filme lançado em passado recente, no de ano 2007, tendo inclusive uma merecidíssima exibição na mostra competitiva de um certo festival com Cannes no nome.
Até hoje não se tem certeza a respeito de quem seria o verdadeiro assassino do Zodíaco. Mas de uma coisa temos ciência. Fincher, em tour de force, faz história em seu melhor filme – desculpe os amantes daquele clube que jamais pode ser mencionado, segundo regras de seus próprios integrantes - esteja o assassino onde estiver, como fantasma ou como ser humano à espreita.
Arrocha animal.
Grande texto, Marcelo. Gostei muito. Já estava pra rever esse filme, agora se tornou obrigação! rs
Meu preferido do Fincher.
Bom texto. Fincher brilha em todas as suas obras e tem uma regularidade impressionante.
Agradeço os comentários. Valeu mesmo, Luis e Carlos! Fincher possui, realmente, uma baita regularidade.