Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O apocalipse de Godard.

9,0

Weekend à Francesa marca a transição de Jean-Luc Godard entre seus primeiros passos na Nouvelle Vague francesa e sua fase imediatamente posterior, mergulhada na ideologia marxista. Antecedendo em um ano o emblemático Maio de 68, com este filme Godard provocaria, mais uma vez, reações radicais nos espectadores. Materializou a percepção de um mundo em ruínas com suas observações sobre os valores decadentes do imperialismo americano, impressionou pela ousadia narrativa, pela transgressão formal e por seus experimentos técnicos radicais. Para filmar o plano-sequência em que percorre, a partir de um longuíssimo travelling, um engarrafamento formado por mais de cem automóveis, pelo qual o filme costuma ser lembrado, Godard precisou da autorização do governo francês para fechar uma rodovia inteira – e o resultado dessa aventura, além de seu primor estético, sintetiza muito desse grande filme.

Encontramos aqui um mundo em colapso. Antes de explorá-lo, porém, Godard lança o espectador ao colapso dos relacionamentos humanos. Logo nos primeiros minutos do filme, um casal sentado à cama conversa sobre sexo. A mulher, em suntuoso contra-luz, relata ao marido suas experiências sexuais durante uma viagem de férias. Trepei com fulano, trepei com outro e sua mulher, trepei e trepei. O marido ouve a esposa com a maior frieza do mundo. Posteriormente, durante a viagem que dispara a trama principal, compreendemos o por quê. Todos, em Weekend à Francesa, trepam e falam de suas trepadas de um jeito tão impessoal e desestimulante que, ao final do filme, o sexo soa como uma ação tão mecânica quanto trocar um pneu.

É sintomático. Godard transformou-se em símbolo da geração francesa dos anos 60, e não foi por qualquer bobagem. Se observarmos seu cinema cronologicamente, pode-se notar as transformações pelas quais a juventude francesa passava, pouco a pouco, até eclodir no fatídico movimento grevista de maio de 68. Em O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), Godard já insinuava que só poderiamos ignorar as amarras sociais da burguesia do século XX largando tudo por um amor intenso, pois a liberdade, um ideal de todos à época, era impossível de ser conquistada de outra forma que não a retratada na trágica e poética cena final - transformando o corpo em cinzas e poeira ao vento. Era utopia. Na sequência, em A Chinesa (La Chinoese, 1968), com o mundo quase explodindo e seu cinema consciente desta impossibilidade, Godard filmaria uma fuga às avessas: sem a desejada liberdade das amarras burguesas, a juventude procurava refúgio nos livros, na política, na militância marxista.

Assim voltamos a Weekend à Francesa e ao casal do início, habitantes de um mundo no qual o valor das coisas materiais supera o das pessoas que os possuem. Ambos partem em uma viagem por rodovias repletas de signos do caos. Carros incendiados, colisões bloqueando o tráfego, corpos ensanguentados e vestidos com roupas multicoloridas estirados no asfalto, cadáveres que sequer chocam perante tanta frieza. O automóvel, símbolo do poder econômico ocidental e um dos principais objetos de consumo do homem moderno, é incorporado por Godard às imagens para pintar seu apocalipse social a partir dos exageros consumistas e do capitalismo predatório. A atmosfera do filme se estabelece, assim, a partir de um suposto casamento muito louco entre o cinema de George Romero, com seus metafóricos e físicos filmes de zumbis, e o mestre surrealista Luis Buñuel, com suas observações sempre ácidas e ferrenhas sobre os costumes burgueses. 

Os personagens de Godard vagam pelas estradas da França numa viagem que jamais termina, não interessa o quanto rodem. O asfalto parece uma esteira. Ambos correm e não saem do lugar, topando com tipos e situações absolutamente nonsenses. “Que filme ruim, tudo o que fazemos é encontrar gente doida” fala o protagonista em determinado momento, num daqueles jogos metalinguísticos célebres de Godard. Nessa sensação de aprisionamento narrativo, percebemos que Weekend à Francesa também não deixa de representar uma auto-colisão do cinema de Godard. É sua experiência limítrofe, a arte colocada à prova, o cinema implodindo em nossa frente de forma quase apoteótica - isso até que, em certo momento, enquanto os personagens fazem uma curva em alta velocidade, a película literalmente se desfragmenta.

Toda a inquietude do mundo se volta a Weekend à Francesa neste momento. A partir daí o filme de Godard perde o fôlego; fica estático. Nem mesmo corre no lugar. Se não sabíamos onde tudo aquilo iria chegar, ou se enfim chegaria a algum lugar, agora temos certeza: ficará parado neste instante. A colisão dos homens com um mundo em chamas ganha contornos ainda desesperadores. Não por acaso, um filme que abre com a conversa de um casal sobre sexo encerra com canibalismo, com a mulher comendo os restos do marido como se comesse uma chuleta de porco. Os homens regressam à boçalidade, vivem em florestas, se alimentam uns dos outros. Bem-vindos às ruínas sociais de Godard.

Em meio a esse universo, o diretor insere doses ainda maiores de discursos políticos que em qualquer um de seus filmes anteriores e vai, aos poucos, descortinando os problemas do mundo. Era um prenúncio da fase marxista e da parceria com o grupo de cinema tcheco Dziga Vertov. Era o fim daquele Godard que nos fez rir em Uma Mulher é uma Mulher (Une Femme est une Femme, 1961), que subverteu fórmulas narrativas clássicas em Alphaville (idem, 1965) ou Bande à Part (idem, 1964), que amou o cinema em O Desprezo (Le Mépris, 1963). Em Weekend à Francesa, Godard abdica da Nouvelle Vague com a câmera em punhos e se declara um militante do mundo.

Comentários (2)

Faça login para comentar.