O cinema de Jean-Pierre Jeunet finalmente conquista equilíbrio melhor em uma história infantil.
Jean-Pierre Jeunet conseguiu, especialmente em Delicatessen, Ladrão de Sonhos e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, formatar um estilo visual que conseguia transpor para o live action trejeitos que pertenciam ao cinema de animação; suas intervenções na pós-produção, as escolhas de seus ângulos e movimentos de câmeras e especialmente o corte e ritmo de seus filmes conseguem criar uma atmosfera fabulosa e irreverente, tornando-se marca registrada de seus trabalhos.
A primeira pergunta que me faço diante do cinema de Jeunet é se eu me interesso por isso. Particularmente não. O apuro visual é algo que prezo e espero em um filme, mas talvez os meus gostos particulares não encontrem as mesmas demandas de Jeunet (e constato isso com um pouco de surpresa, já que sou formado em cinema de animação); nesse seu mais recente trabalho, Uma Viagem Extraordinária, figuram diversos momentos furtados de seus trabalhos anteriores. Todo o vocabulário visual (como mescla de imagens, filtros extravagantes, muitos e muitos travellings, plongés, etc) é incessantemente rastro da estética do diretor, certamente cativante para milhões de espectadores ao redor do mundo, mas que sempre me pareceu importuna demais, especialmente em Amélie. Aqui, porém, os elementos visuais se encontram em mais sintonia, não só porque eles são particularmente mais contidos, mas porque trata-se de uma história mais receptiva às intervenções do diretor.
Uma segunda pergunta me faço diante do cinema de Jeunet: a história tem força por conta própria? Particularmente, respondo que não. Nenhum de seus filmes me parece bom o bastante, por diversos motivos. Uma Viagem Extraordinária é um esforço decente de materializar uma fábula infantil, daquelas que possuem uma moral, um posicionamento claro. Spivet, o pequeno protagonista do filme, precisa embarcar numa jornada para superar a morte traumática do irmão gêmeo, e o filme cria o direcionamento necessário para postular que não faz sentido conviver com o trauma ou com a culpa, e que as coisas supostamente acontecem simplesmente por acontecer.
Esse arco dramático está encarcerado no segundo plano do filme, escondido por trás do mote mais explícito: TS Spivet é um garoto superdotado que ganha um conceituado prêmio científico em Washington e embarca numa viagem para receber esse prêmio, sem que ninguém da academia saiba que ele é apenas um garoto de 10 anos de idade.
Meu maior incômodo com essa coisa toda é que o cinema de Jeunet é erguido em cima de mentiras (que são, é preciso sempre reconhecer, pessoais, próprias, intransferíveis – as minhas mentiras são diferentes das de outras pessoas). Em A Viagem Extraordinária Spivet encontra paz em seus traumas e atinge sua redenção, que vem através de um ato imediato, e não de um processo; repentinamente, todos os conflitos se resolvem. De uma só vez, o pai é herói e não vilão; a morte do irmão não incomoda mais; o trauma, a culpa, o arrependimento deixam de existir em um passe de pura mágica. Não percebo o mundo dessa forma e não aceito um terceiro ato que quebre as complexidades, ao invés de problematiza-las e resolve-las (coerentemente). É um cinema de falsidade, de propaganda.
Trata-se, é claro, de uma boa propaganda, e como tal te suga pra dentro dela, um buraco negro formulado por fotógrafos, designers e aqueles tipos de pessoas que conseguem apontar o público alvo de alguma coisa. A linguagem estética do cinema de Jeunet me parece melhor formatada para agradar crianças, e digo isso sem nenhum tom de desprezo. Esse último trabalho é, afinal de contas, o filme mais infantil do diretor, que mesmo em obras anteriores conseguia articular ritmos e imagens capazes de absorverem a atenção de crianças. Diante do calabouço estético que é a linguagem do cinema infantil, como professor e irmão, eu aceito tudo que puder, fazendo sempre a ressalva forte de que o cinema de Jeunet seria muito mais potente se suas histórias fossem criadas por outras pessoas.
Mas eu não sou agente vocacional de Jean-Pierre Jeunet, apenas assisti alguns de seus filmes e formei algumas opiniões. Sabemos que seu último trabalho em inglês foi o quarto filme da franquia Alien, um fracasso absoluto, talvez responsável por um exílio autoaplicado tão longo, onde o cineasta conseguiu reencontrar, em termos comerciais, o balanço em seu trabalho. Ele retorna agora ao idioma inglês em um filme tremendamente mais apropriado para o seu tato e que, em muitos aspectos, dá muito certo. O elenco é qualificado e o pequeno Spivet, interpretado por Kyle Catlett, é cativante; até o final do segundo ato, o filme dava impressão que seria melhor do que terminou sendo. Seria muito interessante acompanhar a trajetória do diretor em terrenos norteamericanos, onde ele provavelmente teria a incumbência maior de dirigir, e não de escrever suas histórias.
Parece bem legal.
Diretor bem ruinzinho esse...não sei se dou crédito e assisto...