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Críticas

Cineplayers

A space opera de Luc Besson.

6,0
Publicado pela primeira vez na edição 420 da revista francesa Pilote em 1967, a revista Valerian, agente espaço-temporal (renomeado para Valerian e Laureline em seu quadragésimo aniversário) é o tipo de produto que só poderia ter sido criado mesmo na Europa dos anos 60. A space opera produzida por pioneiros como Edgar Rice Burroughs em John Carter, nomeada por apresentar o conjunto de elementos do western (duelos, romance, política) em um contexto fortemente fantástico, foi levada ao extremo do maniqueísmo simplista e esquisitice simpática em Buck Rogers e Flash Gordon. Quando o desbunde atingiu países como Inglaterra e França, ganharia em quadrinhos como Valérian e Barbarella um gosto ainda mais transgressor, deixando para trás o público adolescente e mirando novos voos. 

Se antes a grande atração era sair do próprio planeta e enfrentar déspotas exóticos (uma metáfora de guerra?) conhecendo de forma desordenada mil e um planetas, raças alienígenas e construções e aparatos que abandonam a ficção-científica e entram no terreno do que poderia ser chamado de fantasia espacial, histórias em quadrinhos como Valérian e a célebre Barbarella (que ainda na década de 60 viraria filme de Roger Vadim estrelando a musa Jane Fonda) virou moda entre o público hippie europeu histórias lotadas de cores, sex-appeal e temáticas humanistas sobre paz e amor. O humor também é marcante: se Rogers e Gordon levavam-se à sério em sua simplicidade e inocência, esses quadrinhos europeus já assumiam a cafonice como arma narrativa de maneira muito bem-humorada.

A criação do roteirista Pierre Christin e do desenhista Jean-Claude Mézières sobre o casal de policiais espaço-temporais parecia praticamente implorar por um olhar de Luc Besson, francês que tem como principal marca autoral dar a sua visão dos ambientes favoritos da pulp fiction, como os filmes de crime, em O Profissional e Nikita - Criada Para Matar, e a ficção-científica, em O Quinto Elemento e Lucy. Célebre pela estética arrojada de seus filmes mas com uma carreira irregular no conjunto da obra, uma coisa podemos perceber: em um filme como Valérian e a Cidade dos Mil Planetas um diretor fã da hiperestilização como Luc Besson sente-se em casa, o que no saldo final é tanto uma vantagem quanto um fator bem problemático da obra. 

Vantagem porque é certamente um prazer toda a concepção visual elaborada pelo diretor - A Cidade dos Mil Planetas moderniza muitos elementos do quadrinho original (como os uniformes e naves, que lembram muito os videogames e filmes sci-fi atuais) mas também é carregado de tons pastéis vibrantes e chamativos em sua paleta cromática, de maneira que por vezes remete ao surrealismo gráfico do quadrinista Jean “Moëbius” Giraud, herdando além das gradações de cor as proporções de quadro com pontos de fuga vertiginosos, a sedução por ambientes estranhos e fascinantes e a mão pesada na caracterização de personagens absurdos, atraentes ou monstruosos. 

Já um fator bem problemático é a assumida canastrice da história, que já ficou datada. Ainda que certos produtos da cultura popular nos dias de hoje tenham tornado isso algo cool, a interação de Valérian e Laureline com um pequeno animal conversor de energia, último resquício de um planeta extinto que é caçado por seus sobreviventes, não possui o distanciamento crítico que a adaptação de uma obra com um distanciamento temporal tão grande quanto essa pediria. É um filme desnecessariamente longo (129 minutos), nada enxuto como as histórias de quadrinho de origem: personagens são unidos e separados mais de uma vez, e a missão principal é fracionada em pequenas missões de resgate pouco relacionadas com o arco central e que em sua maioria apenas cansam a disposição do espectador.

Por exemplo, quando, ao caçar seus antagonistas, Valerian se perde em uma zona não mapeada. Laureline vai em seu encalço, interage com vários outros personagens pontuais e, quando encontra o parceiro, é sequestrada. Valerian repete o mesmo ciclo antes que a história ande para o que interessa. Tem boas ideias nesse meio - Bubbles, a personagem transmorfa de Rihanna e as três aves antropomórficas mereciam talvez até arco próprio pelo seu carisma, mas para a história são apenas ferramentas narrativas que, uma vez ultrapassadas, são esquecidas e retiram qualquer potencial empático.

O casal central interpretado por Dane Deehan e Cara DeLevigne não possui eficiência dramática e muito menos timing cômico - ou seja, são pouco capazes de competir seja com casais clássicos do gênero como Leia Organa e Han Solo em Star Wars ou mesmo ícones recentes como StarLord e Gamora em Guardiões da Galáxia. São muito melhores como testemunha dos grandes eventos (a luta dos sobreviventes da raça extinta por sobrevivência, o general autoritário interpretado por Clive Owen) ou como “escadas” de personagens comicamente esquisitos (o soldado que possui outros seres e se empolga, a preocupação artística de Bubbles, o reino dos seres gigantes engajados em cerimônias inúteis). 

O roteiro não colabora muito no desenvolvimento dos dois - não nos importamos com o seu romance morno pois não há urgência dramática, apenas discursos genéricos, que na boca de um Chris Pratt, Harrison Ford, Carrie Fisher ou Zoe Saldaña seriam melhor trabalhados em suas histórias de origem. O mulherengo tentando entrar na linha para conquistar a moça de personalidade forte é um clichê da space opera, como o elemento de romance/comédia do “faroeste sideral” que o gênero propõe, mas quando mal utilizado parece que foram personagens criados apenas para ter um fio condutor a seguir no meio da maluquice generalizada. 

E Besson é um diretor conhecido por pegar a pulp fiction para afinal fazer filmes de personagens - Nikita em boa parte é um ritual de iniciação, O Profissional é uma história de martírio, O Quinto Elemento é uma tentativa de conciliar projetos utópicos de mundo com uma realidade feia e suja pelas perspectivas de seus personagens. Mas não é o caso aqui, que acaba virando a tal pulp fiction fora da época, com atores inexpressivos testemunhando o que passa a ser o personagem principal: o background do seu filme, a maneira como é organizado, a história da formação de Alpha, a cidade dos mil planetas, com a união dos povos apresentada em uma sequência musicada ao som de “Space Oddity” quase sem diálogo nenhum, deixando apenas a justaposição de imagens nos narrar o acontecido. Destruição de planetas, viagens dimensionais, perseguição de naves, etc. - esse é o ouro do filme, filmado com mais ambição estética do que com o miolo narrativo central, genérico e pouco carismático para um universo tão inventivo, onde alturas de câmera, travellings, zooms e montagens alternadas justificam-se o tempo todo para nos transportar para aquele mundo detalhado e absurdo. 

Como tradução audiovisual de uma obra originária da nona arte, fica no meio do caminho. O espírito certamente está aqui e é notável como Besson é um fã da cultura popular do seu continente, mas o espírito fanfarrão de maluquice interestelar não é atualizado, agora parecendo um tanto inocente, “complicando” o simples, esticando e fazendo a urgência tropeçar, com momentos óbvios demais sufocando um delírio visual tão grande. Poderia até mesmo transcender e tornar o filme de Valérian tão icônico quanto o foi de Barbarella lá em 1968, tão conhecido quanto seu quadrinho, “continuando espiritualmente” o legado. Do jeito que ficou, está mais para uma história comum de Valérian e Laureline, agora em live-action. Não decepciona quem acompanha o trabalho de Besson, mas ao mesmo tempo, desnecessariamente comprido do jeito que é e com alguns momentos risíveis e não apenas paródicos, passa a alguns anos-luz de empolgar. 

Comentários (1)

Jules F. Melo Borges | sábado, 05 de Agosto de 2017 - 18:23

"...parece que foram personagens criados apenas para ter um fio condutor a seguir no meio da maluquice generalizada."
Êpa, isso não é necessariamente um desastre. 😏
Ainda tem esperança pra esse filme...

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