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Críticas

Cineplayers

De onde não se vê estrelas.

8,5
“Vagas estrelas da Ursa, 
eu não acreditava 
voltar e poder novamente contemplá-las 
brilhando e iluminando o jardim de meu pai,
ou conversar com você de sua janela 
nessa casa onde vivi minha infância 
e vi a última alegria da minha vida se desvanecer
-- Giacomo Leopardi


Vagas estrelas da Ursa... O título vem de um verso do poeta italiano Giacomo Leopardi. Já o filme é uma releitura da tragédia grega de Electra, peça de Sófocles. Em cena, um retorno a Volterra, um regresso ao passado de seus complexos e obscuros protagonistas. O que Luchino Visconti propõe é uma submersão ao que é longínquo, mas persistente na memória afetiva, embora visivelmente destrutiva. Então perceba: o filme constantemente traz alusões às decorrências do tempo. A narrativa toda é visualmente povoada por monumentos que retratam a história do país, plano de fundo adequado às pretensões históricas e emocionais a serem desenvolvidas. Aqui, o passado é um castigo guardado onde a ursa não brilha.

As referências visuais – uma das cenas iniciais dentro de um carro em movimento é uma apresentação local muito bem arquitetada – implicam no pretérito entre infelizes lembranças do nazismo e as consequências da Segunda Guerra na Europa. A repercussão da violência da guerra fundamenta o enredo. Os países estão se reerguendo de suas próprias ruínas. A fotografia encontra alguma beleza nisso. Este entorno contextual adorna a trama que parece sempre presa e amordaçada, no sentido de manter-se prestes a uma eclosão imprevista, capaz de acontecer a qualquer instante. Assim fica por um longo tempo com o espectador aguardando. É quando o silêncio capta o não dito que entramos de vez nessa pulsão narrada por Visconti.

Na história constam aspectos elementares do desejo carnal, visceral às angústias salientadas no comportamento de seus personagens. São vários os recursos que emulam o anseio, todos esses traduzidos nas relações representadas, fotografadas a partir de um preto e branco denso, mórbido, quase aspirando à imagética de um horror soturno. O ator francês Jean Sorel tem uma performance não menos do que esplêndida. Ele escreve um livro de memórias, um livro maldito. Junto a ele, em cena, Claudia Cardinale, que vive sua irmã, deslumbra tal como sempre faz. A atriz utiliza de suas expressões acentuadas – e aqui destaco seu pintado olhar lancinante – e movimentos naturalmente eróticos para somar à dinâmica relacional desenvolvida pelo roteiro, favorecendo a composição de sua personagem bidimensional que atende pelo nome de Sandra. A inquieta e indecifrável Sandra que acompanharemos.

Ela casa-se com Andrew, americano que viajou até a Europa a fim de conhecer histórias sobre Auschwitz. O passado está à tona em outro aspecto. E foi em Auschwitz que um pesadelo familiar se sucedeu. É quando Sandra decide levar o marido para conhecer a casa palaciana de seus pais, em Volterra, na Toscana, que a trama se lança às descobertas. A investigação de Andrew, por mera ocasião, encontra um novo foco de atenção. É aí que, inevitavelmente, a partir do momento que conhecemos o mito de Electra e Orestes, encaixamos as peças, entendendo essa releitura, ou melhor, essa adaptação de Visconti a respeito do mito.

Entre tantas coisas exuberantes no decorrer da obra, uma das mais marcantes consiste em sua cinematografia, o desenho da luz sobre o corpo de seus personagens. Estes irrompem das sombras, às vezes similares aos bustos e demais obras de arte apresentadas. A nudez em certos instantes refere-se às estátuas gregas iluminadas. Sandra e seu irmão dividem espaço com todas as artes, como se fizessem parte de um museu de memórias onde tudo envelheceu conjuntamente, restando a incapacidade de sair dali, mover-se, arrancar todas as raízes. Desgarrar do pecado. É um peso insuportável carregado pela dupla tal qual um segredo que não demora a nos ser revelado. A narrativa não existe em pró do segredo, mas do modo o qual os personagens o suportam.

Visconti, com seu cinema cabal, novamente disparou contra a decadência da sociedade. Este é um dos temas centrais de seu impactante cinema. Adentramos numa espiral de destruição que implica a moral: ao passo que um vislumbra a luz do passado, com Gianni trazendo-o à luz, Sandra o nega, esquivando-se num conflito pessoal. Em frente à estatua do pai, encoberta, os dois se encontram. Visconti é hábil ao tratar distintas discussões. Aqui procura romper com aquele que considerava ser o último tabu da sociedade contemporânea. Cenas magníficas fez de As vagas estrelas da Ursa um filme impetuoso e absolutamente rico. O diretor o lançou logo após O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), considerado sua obra-prima, o que rendeu uma recepção menos empolgante a este. Não teve a mesma atenção à época, mas é igualmente relevante e admirável.

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