O rizoma, na filosofia, engloba um conceito interessante de instigar a inteligência do leitor/espectador/teólogo a encontrar o início dentro de um labirinto sem fim, repleto de passagens e ramificações, mas que não possui centro nem periferia. É um conceito que se choca com a ideia tradicional de um labirinto nutrida pela maioria, onde há sempre a entrada, o centro e a saída. Da opção de se criar histórias ou teorias dentro desse formato complexo, nascem infinitas possibilidades fragmentadas que possivelmente jamais se encaixem ou talvez sequer se esbarrem, montando assim uma trama que jamais se resolve e que só fica maior e mais insolucionável conforme se desdobra.
É um jogo bastante intrincado baseado nesse conceito rizomático que guia a teia construída por Christopher Smith em Triângulo do Medo (Triangle, 2009), um dos melhores suspenses dos últimos anos. Se parece uma ideia complexa demais de assimilar – e na verdade não é –, Smith deixa uma dica clara, que serve mais como uma analogia, para o espectador embarcar na proposta e pegar no ar o sentido da brincadeira, quando, em determinada cena, a protagonista escuta o som irritante de um disco riscado em uma vitrola velha. A estrofe da música condenada a se repetir pelo infinito enquanto alguém não desligar o aparelho, nos dá uma noção das proporções que este trabalho pode alcançar. Mais sufocante do que tentar achar a saída de um labirinto comum, é entender que se está em um labirinto circular que jamais encontrará um limite ou um fim.
Jess (Melissa George), mãe de um garotinho problemático, deixa o filho na escola em uma manhã qualquer para aceitar o convite de um paquera de velejar com os amigos dele. Durante o passeio, uma tempestade afunda a embarcação e obriga os sobreviventes a invadir um transatlântico para pedir ajuda. Jess sente que há algo errado naquela história. O lugar é deserto, os relógios estão parados, não há vento ou correntes de ar e o som se propaga com certa dificuldade pelo ambiente. E, o pior de tudo, ela sente que já esteve ali antes. Para piorar de vez a situação, um mascarado aparece com uma arma atirando em todos, disposto a matar um por um.
Se a premissa parece um tanto batida, do grupo de jovens que vai procurar ajudar em algum lugar estranho depois de sofrer um acidente e acaba sendo perseguido por um maníaco armado, o desenvolvimento é surpreendente. Smith brinca aqui com algumas ideias interessantes já trabalhadas antes em produções como a série The Twilight Zone, em que há uma sutil desestruturação no conceito físico de tempo-espaço, a relação de fatores que forma nossa noção de realidade. Ao ousar alterar essa sintonia, Smith abre gigantescos rasgos espaço-temporais em sua narrativa, impossibilitando que a trama consiga fechar todas as suas pontas soltas. Sendo assim, temos um trabalho cheio de arestas, muitas delas ocultadas por elementos de encenação, potencializado pelo efeito unicamente cinematográfico de ocultar o que há em cena, e revelar apenas aquilo que julga ser necessário para manter a vontade do público em desvendar o enigma cada vez mais vertiginoso.
Claro que isso não serve de desculpa para justificar alguns furos no roteiro, que ficam à vista dos espectadores mais atentos, ou pelo menos daqueles que assistiram mais de uma vez (e, sendo sincero, quem liga pra isso?). Sua base é fundamentada em algumas histórias da mitologia grega, como a de Éolo, ou Aeolus para os americanos (no filme, é o nome do transatlântico), senhor dos ventos que decidia o destino dos navegantes marítimos segundo seu humor e boa vontade; e de Sísifo, o homem amaldiçoado pelos deuses a empurrar por toda a eternidade uma gigantesca pedra circular montanha acima, sem nunca conseguir chegar ao topo, já que a rocha sempre acabava naturalmente rolando para baixo, contra seus esforços. No filme, Sísifo aparece em uma enorme pintura que enfeita um dos corredores do navio e, em um entendimento geral, está ali para deixar claro que todos estão aprisionados em um tempo circular condenado a se repetir para sempre. Englobando todos os mitos está, obviamente, a famosa lenda do Triângulo das Bermudas, local misterioso onde as embarcações desaparecem e ficam presas num espaço morto e livre da ação do tempo.
O que torna Triângulo do Medo tão instigante são justamente essas pequenas ideias e dicas deixadas por Smith, que só alimentam a imaginação do espectador e a obriga a procurar involuntariamente soluções capazes de romper com a “maldição” e livrar a protagonista daquele labirinto infinito. Não é um filme feito para ser plenamente desvendado, até porque teoria nenhuma seria capaz de enquadrá-lo em um único entendimento, muito menos ser comparado ao estilo de David Lynch, como tantos apontaram. Apesar de parecer um quebra-cabeça confuso e cheio de peças faltando, não segue pelo mesmo caminho das obras de Lynch, muito menos alcança o primor destas. Seu valor é muito mais particular e modesto, principalmente se analisarmos o sopro de fôlego que deu ao cinema de terror americano recente, embora tenha passado despercebido pela maioria. Inclusive em seu próprio título, que talvez faça menção ao Triângulo das Bermudas, mas que ironicamente se trai ao ocultar a ideia de que estamos lidando, no fim das contas, com um trabalho de dinâmica cíclica. Melhor dizendo, um trabalho em espiral, onde sobram pontas soltas e que justamente por isso soa tão vivo e cheio de possibilidades na memória, daqueles que você pode assistir mil vezes, sempre tenso e disposto a achar qualquer detalhe ou indício que seja o suficiente para desvendar pelo menos parte desse mistério infernal.
Excelente filme, ótima critica, mas o menino não é problemático, ele é especial, é portador do Transtorno do Espectro Autista...
Fiz uma pequena TEORIA tentando explicar, através de alguns conceitos de física...
http://www.omundodoscinefilos.blogspot.com.br/2011/01/triangulo-do-medo-teoria.html
O vi ontem. Muito interessante.
Texto excelente!
O filme é super desafiador e inquietante, e os minutos finais deixam tudo mais aflitivo ainda, como a crítica dá conta de apontar.