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Críticas

Cineplayers

O esfacelamento do papel do jovem no cinema.

2,0

Há quem diga que a juventude é uma invenção do séc. XX. Existem livros, dissertações, teses, pensamentos que tentam comprovar que a adolescência, um perfil e comportamento peculiar entre a infância e a fase adulta, é algo típico das gerações após a 2º Guerra Mundial. Esse novo estágio da vida traria consigo um novo modo de compreensão da vida, uma inédita forma de contestação de valores sociais vigentes.  Os horrores do conflito mundial, somandos ao impacto cultural da bomba atômica e a constante iminência do fim do mundo, deram início a uma nova ordem cultural, um pensamento coletivo que visa a necessidade de viver intensamente enquanto se é jovem, uma busca de negação ao passado e aversão a gerações anteriores  - jamais confiar em alguém com mais de 30 anos.

O reflexo disso está presente em uma infinidade de manifestações culturais e sociais.  No caso do cinema especificamente, tem sua parcela de responsabilidade tanto no início do cinema moderno, na forma dos “novos cinemas” que surgiriam em diversos países, como na questão do jovem como protagonista de narrativas, e a divergência entre ambiente familiar e sociedade hostil, centrado na figura do pária, que o cinema norte-americano simbolizou em personagens jovens e sem rumo, em filmes como O Selvagem (The Wild One, 1953), com Marlon Brando, e Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), com James Dean. Embora acredite que tudo isso faça sentido, particularmente discordo do pensamento de que o surgimento do conceito de juventude, e de seu descompasso com o mundo, como um fenômeno proeminente somente a partir das gerações pós-2º Guerra Mundial, afinal isso seria muito generalizante. Existem ao menos dois livros que comprovam o contrário e retratam bem essa corrente de pensamento e que, em tese, seriam precisamente a gênese o de um filme com a proposta de Submarine (Submarine, 2010) – afinal, apesar da distância de um século, são argumentos e enredos que se assemelham em muitos aspectos. São eles O Jovem Törless  (1906), do austríaco Robert Musil, e principalmente O Retrato do Artista Quando Jovem (1916), do irlandês James Joyce.  São obras do início da carreira de cada escritor, com protagonistas adolescentes, no entanto em narrativas complexas, mas que, já há um século, traziam as questões seminais quanto ao rito de passagem para a vida adulta.

De que se trata, então, o filme Submarine? Também um trabalho de estreia, este amorfo “drama-comédia” é ambientado em um subúrbio inglês, onde somos apresentados a Oliver Tate (Craig Roberts), de 15 anos, pseudo sociólogo mirim, espião e crítico da vida adulta, menino que está em evidente desajuste no ambiente escolar. Todos os seus conflitos e reflexões, sua dificuldade de adaptação ao comportamento social dos colegas nos é trazido por meio de sua narração off. Eis que, em meio a digressões e descobertas, surge com vigor a necessidade da vida sexual como meio de autoafirmação, possibilidade que vê na colega Jordana (Yasmin Paige), que, assim como ele, é também uma pessoa “diferente” dos outros – o que nele é introspecção, nela é agressividade.  Paralelamente existe a vida familiar de Oliver, a fragilidade do pai Lloyd Tate (Noah Taylor), representando justamente a falta de uma referência paterna e declínio da figura masculina, e sua mãe Jill Tate (Sally Hawkins), em crise no casamento e nostalgia com seu passado de jovem.

Submarine é apenas mais um que se soma a produção praticamente infinita de filmes com personagens adolescentes, em sua chegada a este mundo de mazelas, na fase das tais descobertas (a sexual, principalmente), em passagem para a vida adulta, onde se pressupõe uma forma de se enxergar o sistema de maneira crítica, deveras diferente dessa entidade nebulosa e maléfica que é o “outro”. Há o inferno social, num mundo onde tudo é falso, as pessoas são hipócritas e vendidas, a família é um conceito decadente, numa civilização onde o comportamento de manada prevalece, e a sociedade e suas instituições são opressoras e perversas. A verdade está, como diz o filme em seu trecho autoexplicativo, nas “pessoas submarinos”, que estão em outro patamar, imersos em uma abstrata imensidão azul, captando as altas frequências que os outros humanos ordinários não captam, na almejada sensibilidade artística, retratada aqui sob a ótica de um suposto artista quando jovem -  o crítico Roger Ebert teve a pachorra de insinuar que o personagem de Oliver se parece com John Lennon jovem. 

A autoindulgência surge como força motriz: é a tônica insuportável desse filme. De certa forma, por mais reducionista e grosseira que seja, essa crítica social primária  inegavelmente tem  seu fundo de verdade, passível de identificação com o espectador – ou ao menos são matéria-prima legítima para serem discutidas no cinema. Evidente que há de se admitir que a ordem social é algo a ser questionado, que o comportamento humano tem sua perversidade, que as instituições achatam o indivíduo,  que raízes para o totalitarismo prevalecem, e nada melhor do que apontar esses conceitos trazidos pela ótica de um menino de 15 anos – tal como fizeram com bastante erudição Musil e Joyce na literatura, ou como fez J. D. Salinger com O Apanhador no Campo de Centeio (1945-1946), aí já num caso pós-guerra e tipicamente norte-americano.  Adaptar-se a esse mundo não é tarefa fácil, e pode ser um obstáculo para alguém com inteligência e postura diferenciadas.

Mas o fato é que toda a trama de Submarine tem o mesmo esqueleto de uma infinidade de outros com o mesmo tema, já feitos há séculos. É uma repetição vazia de outros filmes sem trazer nada de novo, tudo é apenas diluição.  Mas se aparentemente a trama está ao menos condizente com o que se espera desse tipo de proposta, o que faz de Submarine um desastre como ficção, um aborrecimento cinematográfico?  

O grande equivoco está em sua forma. É uma má adaptação literária. Um filme tem de falar por si só, e as evidências de que o diretor não consegue fazer cinema é pela total insegurança de construir uma narrativa como tal – sequer consegue ser um representante do tema para o cinema atual, o que faz de Submarine um festival de cacoetes para construção de sentido. Primeiro, o filme conta com entretítulos irritantes de tela azul como “Prólogo”, “Partes”, e “Epílogo”. Talvez por pensar se tratar de uma adaptação moderna, uma linguagem de dinâmica jovem, cool, de vanguarda? Errado, isso é absoluta incapacidade de tornar o filme uma entidade independente do livro. Funciona como que um alerta, uma justificativa para o fato de ser uma adaptação literária – já que o filme peca miseravelmente como construção cinematográfica,  uma vez que é uma trama sem rumo e sem propósito. Algo que só se acentua com cenas alternantes e sem sentido dos personagens em fundo negro confessando seus pensamentos diretamente ao espectador. Mesmo sem ler o livro, dá pra se presumir que boa literatura não é: provavelmente algum pastiche sobre anseios de adolescentes se auto conclamando como obra pop pós-moderna.

Outro aspecto nesse sentido é a caricatura, o estilizado, uma suposta linguagem de transposição de uma literatura infanto-juvenil para as telas. Esse tipo de intenção ficcional aqui resulta em personagens apresentados de forma rasteira, absolutamente estereotipados, banais, o que reflete a de falta de densidade da trama e o mais grave: falta de consistência na direção de atores. O que dizer de Noah Taylor, que já fez bons papéis no cinema? Como o pai de Oliver faz uma atuação moribunda, absolutamente vergonhosa. É chocante de tão ruim. As cenas de diálogo e tensão entre a família parecem retiradas de algum teste de elenco.  Submarine, como geralmente acontece com más adaptações literárias, é todo centrado na questão narração off, com o protagonista certamente lendo trechos do livro em voz alta, seus pensamentos explicando cenas, tal como acontece em produções para a TV  - não por acaso o diretor desse filme é um ator de seriado.

Por não ter densidade, todo o filme é recheado de referências colocadas de forma gratuita, a esmo, um trabalho primário de “semiótica”, talhando um tipo de dramaturgia que recorre a citações óbvias o tempo todo. Começando pelo nome do protagonista: “Oliver Tate”. Não se pode presumir uma menção mais óbvia a Oliver Twist, indo além na infâmia: possivelmente uma mistura de Oliver Twist com Henry Tate, que foi responsável e acabou por batizar com seu nome a galeria de arte moderna em Londres, a “Tate Gallery”- sim, a “alma de artista” está em Oliver. Cenas da família reunida, enquadrada pela moldura da porta que os enclausura, na mesa de jantar com um aquário no nível acima; Oliver indo refletir sobre a vida em frente ao mar ao som de baladas chorosas no violão; Oliver presenteando a namorada com uma cópia de O Apanhador no Campo de Centeio. Pior: o que dizer de um jovem protagonista que encerra sua jornada correndo para o mar?  Não, Richard Ayoade, Submarine jamais lamberá as botas de Os Incompreendidos (Les Quatre Cent Coups, 1959) de Fraçois Truffaut, tampouco o seu Oliver Twist é um Antoine Doinel. Não é preciso lá muita bagagem cultural pra ver a imensa colcha de retalhos que é Submarine, um filme que não consegue por mais de 10 minutos falar por si só sem pedir arrego a obras de verdade.

Nesse sentido, é um amontoado de referências, que aborda a questão da juventude, da introspecção e das dificuldades da vida de forma leviana, baseando-se constantemente em gracejos na direção, na tentativa de torná-lo um cult na marra. É produto de uma geração de cineastas que cresceu glorificando escrachos como O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001) e Corra, Lola, Corra (Lola Rennt, 1998), vendidos como filmes europeus de arte, e acham que o cinema será o lugar onde poderão revelar suas afetações artísticas, superar seus recalques, deixar aflorar todo a sua intimidade e introspecção por meio de personagens indies e autoindulgentes, caindo sempre na obviedade no uso de signos e na abordagem rasteira, sempre escancarando de forma literal seus possíveis significados.  Até o Brasil até tem sido agraciado (infelizmente) com obras dessa safra, como Os Famosos e os Duendes da Morte (idem, 2009) e À Deriva (idem, 2009), e até Arnaldo Jabor, quem diria, caiu nessa e fez o execrável A Suprema Felicidade (idem, 2010). E, claro, obras desse naipe também marcam presença em festivais independentes e estão nesse exato momento sendo realizadas por um grupo de jovens estudantes de graduação vestindo tênis All Star (serve oficinas de cinema digital também) na escola de cinema mais perto de você.

Já Submarine vem justamente da Inglaterra, numa cinematografia de tradição ao abordar esse mesmo tema de forma inteligente, e que já produziu verdadeiras obras-primas falando da questão do jovem em seu rito de passagem para a vida adulta, seu descompasso com o ensino e a sociedade, tais como Se... (If...., 1968) de Lindsay Anderson, ganhador do Grand Prix no Festival de Cannes em 1969, e que revelou Malcom McDowell, que logo em seguida faria Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971) – “Se...” era tão representativo que Stanley Kubrick revelou que jamais faria Laranja Mecânica sem McDowell. Ou mesmo o filme símbolo do renascimento do cinema inglês nos anos 60, Tudo Começou no Sábado (Saturday Night and Sunday Morning, 1960), de Karel Reisz. E por meio de enredos alegóricos e forma é que se pode chegar a uma verdadeira reflexão sobre um determinado contexto social ou uma corrente de pensamento. A arte se torna muito mais poderosa, e com muito mais valor, quando transmite sua mensagem por meio da sutileza de sua linguagem. Isso é fazer cinema. Submarine serve apenas de exemplo do contrário, da imaturidade de seu diretor, sua incapacidade em construir uma narrativa de cinema, em dirigir atores, e até de movimentar a câmera, mas sobretudo, é um estandarte de um esvaziamento eminente de valores atribuídos a juventude no século XX. Não há razão para que esses filmes repetitivos existam hoje em dia. É melhor ir ler Robert Musil por nostalgia.

Por fim, deve-se comentar a trilha de Alex Turner, vocalista e líder da banda Arctic Monkeys. O filme ganhou certo destaque por isso, e tende a gerar muita curiosidade aos fãs do grupo. Arctic Monkeys surgiu quando se destacou na internet em 2006, mais especificamente no falecido MySpace, e trazia o jovem Alex, com então 19 anos , cantarolando com voz de pato letras que supostamente refletiam o cotidiano da juventude inglesa dos anos ‘00 – uma Malu Magalhães do Reino Unido. Mas o que sempre se viu nesse grupo foi uma rusticidade musical, um ímpeto juvenil que beira o amadorismo, tudo executado de forma garageira, sem muita qualidade ou acabamento. A escolha de Alex para a trilha de Submarine talvez tenha sido acertada, se pensado em termos de afinidade, de que ambos fazem parte de uma mesma proposta, um mesmo clã – até porque Ayoade fez clipes para a banda. O que torna Alex Turner ainda mais odioso aqui é o fato de que sua identidade no Arctic Monkeys tenha ficado pra trás, e aqui ele empunha as canções de voz e violão das mais melosas possíveis, tal como uma versão britânica do messiânico Eddie Vedder em Na Natureza Selvagem (Into the Wild, 2007) (outro filme imaturo e detestável, na mesma linha),  que incansavelmente pontuam e fazem intervalos entre as cenas, na ideia de criar um clima de sensibilidade, uma aura de delicadeza. Um sentimentalismo barato, que só reafirma a incapacidade desse diretor em representar o jovem no cinema com algum propósito legítimo, senão uma masturbação cinematográfica.

Comentários (18)

Thiago Cunha | terça-feira, 31 de Janeiro de 2012 - 16:14

Ótimo texto, Juliano. Gostei mesmo dele. Vc esbanjou conhecimento nesse!
Vi ontem e concordo com quase tudo o que você disse, principalmente quando você citou a insegurança em relação à narrativa. Filme muito fraco e sem ambição.
Só descordo quando vc relaciona Amelie (obra-prima!) a esse filme, nem se comparam os dois a meu ver. 😋

Mais textos assim, pf! 😁

Lucas Castro | terça-feira, 31 de Janeiro de 2012 - 18:04

Nem sabia que o MySpace tinha acabado. 😢

Rafael Angelo Sales | quinta-feira, 02 de Fevereiro de 2012 - 00:25

Pelo jeito, Juliano odeia música Indie...
Será que só adolescentes apaixonadinhos adoram esse filme e conseguem interpretá-lo de outro jeito? já vi mais uns 5 sites falando mal de Submarine. Não me canso de assistir.

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