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Críticas

Cineplayers

A balada do desajuste.

9,5

O cinema de Herzog pertence a qualquer lugar menos a uma ordem creditada como normal. Seus filmes revolvem sobre obsessões, sobre párias, sobre o inusitado e a estranheza. A fama que criou de louco é um reflexo do seu próprio cinema que desobedece e dispensa estruturas dramáticas convencionais e formas de linguagem consolidadas em detrimento de uma expressão única de imagem, que busca explorar novas, livres e impactantes imagens, reveladas por si.

Entre muitos exemplos de sua filmografia, é também o caso de Stroszek (idem, 1977), que conta a história de Bruno Stroszek, um músico de rua alcoolatra recém-libertado da prisão que envolve-se emocionalmente com uma prostituta e, após ser humilhado e ameaçado por seus cafetões, resolve-se mudar junto com ela e mais seu idoso vizinho Scheitz para os Estados Unidos, tentando recomeçar a vida em Winsconsin. O caminho, é claro, terá vários acidentes durante o percurso, onde na terra das oportunidades será desenhada uma história constante de frustração e marginalidade. E o filme, é claro, anda por águas estranhas, misturando o trágico com o cômico, o típico realismo/naturalismo com o puro absurdo, o que exime o filme desde o primeiro momento do compromisso de satisfazer expectativas, de construir a obra como “crítica social” ou “crônica do sonho americano”, para se dedicar exclusivamente ao cinema.

O ponto é simples: o sonho americano, no filme, nunca existe. A América é outra terra, tão estranha e dura quanto, um campo de batalha e um cenário de conflito, onde a desigualdade e estratificação social gigantescas criam personagens deslocados; Bruno Stroszek é um personagem sem vez e sem voz - literalmente, já que não aprende o inglês e passa por toda a obra falando alemão, sendo cada vez mais socialmente e culturalmente isolado em um espaço que não lhe deu a oportunidade, mas antes, a ilusão da mesma. É essa a atmosfera, é essa a experiência de Stroszek

Bruno S., ator de O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen Alle, 1974) - cujo título original também dava recado, “Cada um por si e Deus contra todos” -  interpreta o tipo personagem de Herzog em uma espécie de versão ficcionalizada da sua vida, o ator também sendo músico autodidata de origem difícil. Mesmo conseguindo redenção através de seus protagonistas, Bruno S., um dos “cineatores” de Herzog ao lado de Klaus Kinski, expressivo em sua limitação de expressão, em seu misto de inocência e sofrimento, é o próprio símbolo de um cinema que emergia da linguagem clássica para quebrar estruturas de drama, apresentar unidades desintegradas e episódicas, não delinear progressão psicológica ou desenho, tirar da câmera o peso de criar correspondências dialéticas e intelectuais entre suas imagens.

Porque no final das contas Stroszek segue uma das máximas de Herzog, “O cinema não é uma arte de estudiosos, mas de analfabetos”. O que nos é exigido não é propriamente o entendimento, os choques antagônicos de contradição e contraposição, mas abraçar a pura imagem em movimento como ponto principal, anterior a uma suposta língua que se pressupôs universal. Por ser analfabeta, a obra de Herzog não pressupõe discurso, mas expressão. Sua obra não prova pontos, não argumenta, rejeita academicismos; o verdadeiro choque de imagem parte do absurdo extraído do real, conflito esse que faz de seus filmes uma tênue e esfumaçada barreira entre documento e registro e ficção e encenação. Não há “sentido” imediato a ser depreendido. Stroszek é instintivo, a balada de um músico autodidata. É antes sensação, com nenhum comprometimento com algo além disso.

As raízes desse tipo de cinema feito no Novo Cinema Alemão tem profundas raízes na história recente da Alemanha. Tendo como início o Manifesto de Oberhausen, em 1962, onde vinte e seis signatários inspirados pela nouvelle vague assumiram como lema Papas Kino ist tot, “o cinema do papai está morto”. A descrença com a linguagem do cinema clássico narrativo assemelha seus passos cinematográficos com os passos físicos de Herzog descritos pelo próprio no diário “Caminhando no Gelo”, que descreve a caminhada a pé do cineasta de Munique até Paris para visitar a amiga então doente Lotte Eisner, crítica e historiadora fundamental do cinema alemão, autora do obrigatório De Caligari a Lili Marlene – O Cinema Alemão, numa esperança de que seu sacrifício a mantivesse viva.

A crença desiludida era que, por conta do nazismo, o cinema alemão sofria a curiosa condição de não ter pais, mas apenas avós – no caso, os cineastas do Expressionismo, autores de filmes aberrantes, que desobedeciam as grandes formas para criar filmes intensos, distorcidos e subjetivos, que acabaram desaguando, duas décadas depois, em anos dedicados a experimentalismo e liberdade, onde não se faz concessões quanto a estrutura ou linguagem: Wenders dissolve o conflito na contemplação perturbadora, nas longas estradas e na batalha entre conflito e rotina; Fassbinder transforma o melodrama de Sirk na expressão expressionista e por vezes quase psicodélica da miséria emocional humana, num terreno de conflito onde o indivíduo era responsável por si diante de um país arrasado. A expressão abandonava o ethos, a moral, a fortuna. Apostava no desajuste, no amoral, nas histórias que acontecem à morte, longe de grandes metrópoles, longe de regimes idealizados, próximos ao típico cenário Herzoguiano, o reino do improvável, do mártir megalômano que segue sonhos e obsessões e frustra-se; como a ficção frustra-se com o real e vice-versa. A batalha acontece dentro do quadro.

É justamente por causa disso que Herzog toma as liberdades que toma, e o filme, em toda a sua tristeza, é preenchido de cenas hilárias, até mesmo naquelas de cunho trágico. A encenação seca das humilhações físicas sofridas pelos cafetões é ao mesmo tempo tensa e ridícula, com o plano sequência imperando sobre o corte, onde a maior escala de tempo experimentada a cada plano quebra o ilusionismo típico da pathos e deixa estampado o caráter lúdico no ritmo da obra, nitidamente pouco interessada na narração, na descrição, em uma necessidade de ter-se uma norma ao criar-se uma obra. Os atores, antes, são avatares do absurdo, que logo abandonam qualquer realismo composto que poderia criar laços emocionais através de uma bem arquitetada dramaturgia para dar lugar ao que é solto, ao que é exagerado, ao improviso, a mescla de personagens fictícios e reais em locações que não pararam de existir só para o filme poder funcionar. Funcionando como a música do protagonista, Stroszek é a balada de Herzog sobre a marginália.

A “loucura” do homem que sedimentou um dos grandes momentos do cinema em um barco passando por cima de uma montanha inflama locações reais, descobre bizarrices invisíveis a olho nu, dificulta o diálogo cria uma torre de Babel onde o homem que busca a liberdade e termina buscando vingança. Uma vingança improvável, engraçadíssima em sua miséria, costurando uma das comédias das mais tristes e uma tragédia das mais engraçadas. O revanchismo individual é característica própria do cinema, individualizador por si, partindo sempre do específico para o geral. Protagonistas cinematográficos tem a predisposição a andarem fora do tom, a serem percebidos e distinguidos pela luz, e em Herzog ganha todas as acepções possíveis, a tristeza, a contemplação, o tédio, o esculacho, o exagero, a ruína esfacelada e jamais erguida de blocos sensoriais que se relacionam por possuir um mesmo personagem que amarra várias contradições dentro de si, onde em um quadro que obriga através de seu ritmo específico, que obriga a concentração e não a dispersão dos sentidos dentro do espaço, criando uma relação espaço-temporal única com quem assiste, onde o afeto tende não a ser guiado, mas a ser livre.

Stroszek, como o seu criador, é germânico por excelência: é maior que a vida, épico em sua dessincronia, à margem com muito orgulho, sacrificando-se com um sorriso no rosto em nome de poder continuar vivo. Bruno, da nova tentativa, da nova esperança, chegando na frustração e na vingança, é um símbolo de um espírito de cinema que rebelou-se contra a arbitrariedade paterna e se envolveu com a má educação de seu avô para prosseguir em terrenos desconhecidos de potencialidades, caminho que Herzog percorreu desde o primeiro filme e até hoje prossegue incansável em seu intuito.

Comentários (3)

Rodrigo Torres | quarta-feira, 21 de Agosto de 2013 - 04:09

Tô enrolando há meses pra conferir esse. Dessa semana não passa!

Francisco Bandeira | domingo, 15 de Dezembro de 2013 - 02:41

Reza a lenda que era o favorito do Ian Curtis. :)

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