O segundo filme de Oliver Stone é um retrato pertinente sobre a irracionalidade da guerra e o papel da mídia em meio ao sofrimento.
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8,0
Todos cinéfilo conhece, ou ao menos possui uma noção básica, do que é o cinema de Oliver Stone. Nos anos 80 e 90, a filmografia do diretor ficou marcada, principalmente, por filmes de forte teor político e críticas diretas à constituição do governo americano, e sendo oriundo da guerra do Vietnã, suas obras ficaram marcadas por olhares bastantes pessoais, o que acabou lhe rendendo já duas estatuetas pelo difícil Platoon e pelo dramalhão (particularmente intragável, diga-se) Nascido em 4 de Julho. Stone também foi um grande entendedor do desesperador cenário econômico de sua terra natal, algo enraizado no interessantíssimo Wall Street – Poder e Cobiça (e que em 2010 obteve uma atualização modernosa através de sua continuação) e também demonstrou profundos laços de afeição com figuras que se rebelavam contra seu tempo (The Doors, onde é dissecada a vida “glamourosa” de Jim Morrison por trás de seu sucesso nos palcos), além de seu ataque mordaz ao uso da violência como espetáculo no controverso Assassinos por Natureza.
Stone, entretanto, já criava raízes no cenário politizado desde antes de seus títulos começarem a alcançar fama, e logo após sua conquista como melhor roteirista no ano de 79 por O Expresso da Meia-Noite, Stone obteve o aval para seu segundo longa-metragem, que em linhas simples, joga seu foco sobre as disputas políticas na cidade El Salvador e sobre o papel da mídia em relação aos fatos. Baseado nos relatos verídicos de Richard Boyle, amigo pessoal de Stone e que co-assina o roteiro, Salvador – O Martírio de um Povo nos apresenta seu protagonista, Boyle (James Woods, bastante enérgico) como um jornalista mal-sucedido que enxerga na possibilidade de cobrir os eventos sangrentos em El Salvador uma oportunidade de se reerguer em meio ao mundo das reportagens. Ele e seu amigo Doctor Rock (James Belushi) chegam à cidade carregando a velha pré-composição estereotipada que a América Latina preservava na época, apontando a cidade como um antro de drogas, prostituição e justiça sem leis. É por esse cenário hostil que Boyle se envolve com a nativa Maria (Elpidia Carrillo), o que o leva, não muito depois, a reformular seus pensamentos sobre a posição do governo local e até mesmo na própria participação dos EUA no conflito local, já que o país apoiava o governo de direita contra a guerrilha de esquerda.
Tendo experimentado na pele o derramamento descabido de sangue durante a Guerra do Vietnã, Stone lança mão de qualquer oportunidade de suavizar o impacto do cenário para mostrar a violência como é. De aspecto cru, o diretor atira para todos os lados, lançando criticas ferozes sobre a irracionalidade do conflito, a ausência de humanidade por ambos os lados frente à ganância e também ao próprio papel dos jornalistas naquele cenário, que muitas vezes enxergam o derramamento de sangue como uma via de alcançar o sucesso em meio ao mercado, apoiados em cima de total indiferença, ao passo que Boyle, tendo desembarcado na cidade com tais ambições, aos poucos vai se tornando gradativamente consciente do quão desesperadora é aquela realidade. Num dos momentos mais belos e impactantes do filme, Boyle e Doctor Rock se encontram em uma pilha de corpos estirados no chão, sem vida e manchados de sangue, e entre diálogos muitíssimo bem escritos, o diretor coloca frente a frente os dois lados da moeda de um jornalista: as obrigações perante o mercado e a necessidade de que tais acontecimentos reservam a necessidade de serem registrados. Uma sequência brilhante.
Para ressaltar o aspecto desesperador do local (repetindo, não é um filme fácil), Stone muitas vezes aproxima sua câmera de tal forma que o espectador constrói a forte impressão de estar acompanhando os acontecimentos em primeira mão, como se estivéssemos assistindo os acontecidos no momento em que estes estão, de fato, ocorrendo. Tal recurso também acentua o choque de momentos históricos acompanhados de perto, como o assassinato do padre Oscar Romero. Tal busca pelo maior grau de realismo, por sinal, é anunciada por Stone desde os créditos iniciais, onde vemos jornalistas se arriscando no meio de um tiroteio sangrento em busca do melhor ângulo, tudo acompanhando diante de lentes que nos convencem de que aquilo, de fato, poderia estar acontecendo naquele momento.
Apesar de seu êxito e importância enquanto relato de um histórico sangrento (o conflito só veio terminar em 1992), Salvador foi bem recebido pela crítica, mas só encontrou alguma fama quando Stone ganhou os holofotes com o lançamento de Platoon. Hoje ocupando um espaço desvalorizado na filmografia do diretor, é um filme obrigatório para quem conhece e admira o trabalho de Stone, que sem qualquer sinal de tendenciosismo (algo que viria inundar seu cinema no início dos anos 2000 pra cá), justifica sua extrema violência como forma de documentar a crueldade da guerra e discutir a própria relevância da mídia em meio aos tiros e bombas. Um filme corajoso que merece ser redescoberto.
Bela crítica e uma bela obra.