A influência do ícone em confronto com o poder do homem.
Dos muitos conflitos que o artista passa durante sua vida e obra, um dos mais frequentes é o da mudança dos tempos. Reinventar-se é necessário para prosseguir expressando seus pensamentos, e é sobre reinvenção que Bertrand Bonello discorre em Saint-Laurent. O diretor francês retrata o vasto leque de personagens na vida do estilista Yves Saint-Laurent e caracteriza a chegada de novos tempos, o eixo europeu na efervescência cultural ocidental dos anos 60, para apresentar discussões temáticas que tentam conferir humanidade a alguém tão reservado como YSL.
Estruturar a narrativa majoritariamente no período de 67 a 76, no qual o estilista atingiu o auge, é uma ótima sacada justamente por colocar à prova o ícone Saint-Laurent quando o mundo já estava em suas mãos. YSL lê a carta de Andy Warhol sobre a ingenuidade da Arte e logo percebe essa transição, essa ruptura, e descobre que é preciso construir uma nova surpresa para o mundo da moda a fim de evoluir como artista. Bonello filma o estilista em meio às suas roupas, contemplando sua obra sem muito interesse, até que encerra a cena com ele literalmente misturado aos manequins. Até ali, YSL era retratado com as características primárias, o bom costureiro que tira medidas e observa roupas com destreza ímpar, mas, a partir da epifania desse choque Paris-Nova York, Saint-Laurent ganha peso ao descobrir no protagonista um homem sufocado pela obra.
Essa dualidade entre América e o Velho Continente, inclusive, gera um conflito entre o valor comercial e o artístico. Enquanto os executivos enxergam YSL como uma marca a ser vendida, talvez um prenuncio da globalização e do branding dos dias de hoje, Pierre Bergé, o companheiro de YSL, tem fé no papel do estilista como um criador tal como um pintor. O embate é apresentado com inteligência pelo roteiro, que coloca como obstáculo narrativo a tradução simultânea no meio da longa reunião para tornar físico o problema ideológico entre ambos. "Você deveria aprender inglês", diz o executivo para Pierre, em uma das melhores cenas do filme, muito porquê é quando a atmosfera de transição mais está a serviço da estrutura.
Um mundo em transição demanda encontros sociais, confraternizações ideológicas, e de coletivo se expressando Saint-Laurent tem em abundância (como também tinha L’Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância, o filme anterior de Bonello). As festas nos clubes, embaladas pelo rock da época, exalam um clima que transmite com perfeição o sinal de tempos diferentes. As expressões humanas são capturadas como um sonho pelo diretor e pela fotógrafa Josée Deshais, sejam envoltas em fumaça ou vistas pelos espelhos caleidoscópicos das boates – e o filme se permite momentos como a dança solitária de Léa Seydoux por acreditar nesse potencial transformador do social.
Social esse que não se manifesta apenas através do público. São frequentes os enquadramentos de Bonello que enfocam corpos sem rosto, mas na dança de aproximação entre YSL e o personagem vivido por Louis Garrel, os corpos ganham rostos, porque há ali uma forma de encontro além da mera estética. Já no mundo apresentado pelo personagem a YSL, o sexual é manifestado no escuro, em uma passarela de vultos que se assemelha aos desfiles até então mostrados no filme. A partir desse romance, YSL observa o mundo apenas como sombras perdidas, sem expressão – e não é por acaso que alguém declara, em certo ponto, que “ama corpos sem alma”. Bonello parece dizer que há o transitório também em todos os seres ao redor de Saint-Laurent, e se alguém fica até o final é porque ali o estilista encontrou um pouco de si mesmo (como a modelo Betty no primeiro encontro na boate, que quase se transforma em YSL por um momento).
Esse ensaio sufocante de consciência do movimento de mudança – e do eventual retrocesso ao tornar impessoal todos os corpos no espaço – serve como instigante pano de fundo para uma investigação da personalidade de Saint-Laurent. E é ao desvelar o "homem por trás do ícone" que o filme se esvazia aos poucos, já que se desvia do interessante arco sugerido pelo início.
Enquanto artista de uma época, YSL buscava um lugar no mundo, mas essa procura parece se esvair conforme a personalidade reclusa aflora. As representações visuais que Bonello concebe por vezes são elegantes, como o belo plano onde o cão no quadro se torna reflexo do cão na vida real, mas majoritariamente reduzem a complexidade que o biografado transmitia no primeiro ato. As metáforas fáceis se enfileiram, como o beijo de pílulas, as cobras na cama de YSL ou a recusa do estilista em ajudar uma amiga se drogando, e enfraquecem consideravelmente a estrutura. Volta e meia, o diretor torna a comentar sobre as tentativas de adequação que YSL passa por, como os cachorros facilmente substituíveis na sua vida, mas em termos de dramaturgia isso é uma exceção no último ato.
A tendência de perder-se no mar de possibilidades que a vida do francês proporcionou já aparece no prólogo, que mostra um YSL cansado com a fama e expondo detalhes de sua adolescência, o que mais tarde se revela injustificado. Sem encontrar motivos fortes para estabelecer uma unidade no drama de YSL, Bonello especula sobre diversos problemas da personalidade do homem sem se aprofundar em algum deles. A influência do ícone entra diretamente em confronto com o poder do homem.
Fica a impressão que Yves Saint-Laurent usou a moda menos como um compromisso com o pensamento, e mais como uma forma de fuga da realidade. Quando passa por um conflito interior, Saint-Laurent olha para sua obra sem conseguir suportar a si mesmo, e é sua vulnerabilidade característica que cria aempatia necessária para o filme oferecer uma experiência positiva, mesmo que inconstante.
O primo pobre dele é HORRÍVEL. Nesse eu aposto fichas.
Pra mim se resume a um exercício prático sobre a função do tempo em uma narrativa. A primeira metade sobre a elasticidade e a segunda sobre como várias sequências podem se entrelaçar. O resultado é um filme truncado e preso às fragilidades de YSL.
Papaléo? ( ͡° ͜ʖ ͡°)
tá, parei.
Papaléo? 😁
Que grata surpresa vê-lo aqui. Grande Gabriel, parabéns pela crítica.