Fantasmas, o cinema, as pessoas e o filmes.
Depois de Bacurau (2019), e por conta de tudo que ele representou tanto para o cinema brasileiro, como para o coraçãozinho de cada um dos seus milhões de espectadores, o rebuliço sobre Kleber Mendonça Filho alcançou níveis recentemente só vistos com Cidade de Deus (2002) e os Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 – O Inimigo agora é Outro (2010). O cineasta pernambucano, desde o seu primeiro longa de ficção fora abraçado pela crítica – antes disso, os seus curtas mais renomados já haviam levado junto também a comunidade cinéfila –, finalmente, logrou êxito mesmo adentro de uma sombria década que fez-se de tudo para distanciar o cinema do povo, abrir vertiginosamente o leque de público. Onde alcançou um patamar único no nosso cenário, e por conseguinte uma enorme responsabilidade na gestão do privilégio de ser o nosso diretor mais renomado.
Muito se opinou sobre os próximos passos de sua carreira, sobre o que ele deveria ou não fazer, e ele como bem sábio que é, fez o que quis. Retratos Fantasmas (2023) pode ser muitas coisas – e é mesmo – mas definitivamente não é o que o público, que apenas vira seu último longa, esperara ou gostasse de (re)ver. E essa é uma escolha absolutamente necessária, mas que exige imensa coragem.
Coragem não de desbravar estúdios e estrelas norte-americanas, mas sim de abrir-se intimamente ao seu público. Enquanto O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016) buscaram ficcionalizar a intimidade do cotidiano, posicionando o espectador como mais um membro daquelas esferas familiares, aqui vemos a utilização do documentário para subjetificar o ofício do cineasta, suas relações familiares e de amizade, além de partilhar seu olhar cinéfilo, sobre si, os filmes, os cinemas, e a cidade de Recife como extensão e meio disso tudo.
Todo cinéfilo que se preze lida com fantasmas. Retratos Fantasmas (2023) é uma ode a eles. Se por um lado, o terror, um dos gêneros mais vistos, transforma-os em figuras medonhas, no trabalho de Mendonça, desde A Menina do Algodão (2002) ou Vinil Verde (2004), e mais consistentemente nos dois longas de ficção já citados, o fantasmagórico tem um lugar de reflexão e cuidado, aterroriza quando deve, nas memórias rurais do primeiro, mas acima de tudo educa, como a presença da empregada na casa da patroa no segundo, e aqui chega categoricamente ao patamar de protagonista.
Dividido em três atos, a obra primeiro se debruça sobre sua casa e seu bairro de Setúbal, espaço de quase todos os seus filmes, mas ambiente essencialmente pensado e carregado nas costas por sua falecida mãe; nos últimos dois, debruça-se sobre o centro, sua transformação arquitetônica/social, seus personagens e seus cinemas/“templos”.
Em toda a obra, vemos um autor que dá voz aos seus pensamentos, ou/e com especial virtuose, quando seleciona com maestria materiais de arquivos próprios seus e o próprio como coadjuvante dos seus personagens, como a interação com o também falecido Seu Alexandre, projecionista do Cine Art Palácio, numa interação à lá Totó e Alfredo de Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988) ou em atuações estritamente ficcionais filmadas diretamente para o filme, como o ato final compartilhado com Rubens Santos.
Se em Crítico (2008), a cinefilia de Mendonça passa pelos seus cineastas favoritos e sua relação com a crítica, em seu mais novo filme, é a cinefilia que passeia pela arte do cineasta. As obras rodadas em Recife, as grandes estrelas estrangeiras que encheram as sessões dos vindouros cinemas de rua. O Cineasta em seu oficio, a entrega de amar o cinema, sem necessariamente nada em troca para o olhar comum, mas a certeza que se leva na bagagem horas, dias, anos do mais nobre que a sétima arte pode entregar.
A segurança de Mendonça em montar um filme que percorre suas memórias e seus segredos, desde o mapa pessoal tomado como referência os cinemas da cidade até o destrinchar da atuação do ruidoso cão, deixa de lado, pelo menos um pouco, o seu mergulho ao cinema de gênero ou de gêneros. Aproxima-se, por outro lado, da metanarrativa, muito bem explorada por Jafar Panahi, por exemplo. Seja em táxis ou em motoristas de aplicativos, ambas utilizam as verdades para narrar o seu relato, sem necessariamente obrigar-se a um trabalho metodológico de jornalista, o método está no cinema, a verdade está na câmera, por mais que a montagem transforme tudo em mentira.
Observador voraz do nosso tempo, olha o passado para entender que a cidade vive processos físicos e consequentemente socioculturais, o cinema que outrora tomava o espaco da igreja católica, depois devolvia aos evangélicos. Manter viva a memória como num edifício em Aquarius é uma missão hercúlea e digna apenas de Sonia Braga, mas sustentar a cidade toda intocável é impossível. Já dizia o conterrâneo fantasma mais famoso de Mendonça: a cidade não para, a cidade só cresce.
A experiência do cinema se transforma, o cinéfilo constrói a sua observação por meio de mortos-vivos, agora também na palma das mãos. O tom nostálgico da trilha sonora indica uma saudade irreparável, mas as recorrentes aparições de seus filhos apontam um cinema do futuro, desconhecido, mas instigante. Ainda que as aglomerações de farmácias nas cidades brasileiras indiquem um desejo secreto de viver para sempre, a única certeza é que os retratos sejam estáticos ou em movimentos que viverão invariavelmente como fantasmas, com sorte vestidos para o carnaval – que também esperamos que não termine.
Filme visto em ante-estréia no dia 17-07-23
ao lado do Kleber no cinema São Jorge na cidade de Lisboa, Portugal.
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