Um dos melhores primeiros minutos de uma cineasta em sua estreia em longas-metragens foi de Céline Sciamma em Tomboy (idem, 2011). O espectador desavisado sobre o filme e seu título (meu caso à época) seguia a história de um menino típico dos Irmãos Dardenne, seu cotidiano palpável e reações mais espontâneas, até ser surpreendido com a descoberta de sua identidade, guardada de modo cuidadoso até na seleção dos pronomes com os quais era referido. E essa estratégia funciona, sim, até para quem sabe do que se trata a história, dada a forma como é construída essa obra, que se ressignifica com um conflito que representa sua grande virada ainda no primeiro ato. Céline mostrava ali ser uma autora meticulosa e de extrema sensibilidade no trato de um tema espinhoso como a transsexualidade em tão tenra idade. Uma aposta: mesmo o mais conservador dos homens e mulheres se empatiza pela situação de Laure, ou Mickäel, porque tão delicada, genuína e comovente. E porque a jovem diretora conta isso como ninguém.
Garotas (Bande de filles, 2014), seu segundo longa-metragem, apresenta uma evolução curiosa. A abordagem segue sendo naturalista e a câmera caminha colada às suas protagonistas, jovens adolescentes negras, em passeios pelos subúrbios franceses. Assim, mais uma vez, a cineasta filma no intuito de aproximar o espectador de uma figura marginalizada da sociedade contemporânea. O registro muda e a lente se distancia de Marieme (Karidja Touré) e suas amigas para observar suas ações e reações em um cenário em que a exclusão social se perpetua e retroalimenta a delinquência juvenil. Essa alternância de perspectiva (proximidade e distanciamento) é um movimento fundamental em qualquer forma de estudo, especialmente a sociológica, em que — também — se enquadra esse filme da diretora francesa.
Todos esses procedimentos deverão acompanhar Céline Sciamma por toda a carreira. Mas se diluirão em contextos diferentes, menos apropriados, como o de Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu, 2019). Câmeras leves e tecnologias modernas como a steadycam não combinam muito com a França do século 18, então a diretora passa a adotar uma postura mais clássica e um registro mais distanciado. Assim investindo no tempo e no espaço como ferramenta de imersão do público na conjuntura de suas personagens: duas mulheres, uma pintora e sua modelo, vidradas uma na outra em um casarão isolado à beira-mar. Os cenários se repetem, as situações, de certa forma, também, o quadro fecha e se fixa em seus olhares, os planos se alongam. Uma preparação arrastada que evoca a dificuldade de se consumar um romance proibido. E redundará em cenas de sensualidade extrema e singular, já que todo esse processo de sedução terá uma forma que reflete a sua essência: furtiva.
A excelência dessa construção decorre do domínio cênico de Céline Sciamma. Inteligente em atribuir a direção de fotografia para outra profissional, a experiente Claire Mathon (Um Estranho no Lago, Atlantique), que constrói boas cenas — especialmente à noite — sempre feitas de luz natural. E no modo como explora um elenco mais tarimbado, como a veterana Valeria Golino, a atriz-sensação da França Adèle Haenel (em uma atuação que aprofunda as ambiguidades do título Retrato de uma Jovem em Chamas) e Noémie Merlant, cuja expressão penetrante é um dos eixos fundamentais da obra. Luàna Bajrami é a menos conhecida e experimentada do elenco e isso é usado perfeitamente como ferramenta narrativa; ela interpreta uma criada que precisa de todo o suporte de Marianne, uma mulher artista, mais independente e mais velha, e Héloïse, sua patroa rebelde, para (spoiler!!) esconder a gravidez e fazer um perigoso aborto.
Esse é apenas um dos momentos em que Céline Sciamma usa seu olhar feminino para retratar mulheres fortes, decididas a resistir mesmo quando cientes da inevitabilidade do destino que o mundo, patriarcal, lhes reserva. A sororidade que o filme transpira é tão bonita quanto uma cena de comunhão entre elas em torno de uma fogueira. A forma teatral como essa sequência termina, com Héloïse entrando literalmente em chamas, a enriquece de forma figurativa, remetendo ao mito das bruxas, seu ritualístico, sua caça e execução com o fogo, e a questão fundamental em torno da prática de um ponto de vista feminicida: a perseguição de mulheres que ousassem se levantar contra a ordem, historicamente moldada para podar sua liberdade — tanto mais se na iminência de pecar em uma relação homossexual.
Céline Sciamma narra esse relacionamento condenado com uma certa austeridade, o que associo aos grandes romances, aos grandes clássicos, da literatura. Cujo requinte na forma, eventualmente difícil, esconde sob si e revela aos poucos a potência de seu conteúdo. O jogo de olhares entre Marianne e Héloïse representa bem essa dinâmica e esse rigor. Seus olhares são cheios de tensão, estrita e sexual, nos minutos em que o filme é mais intenso, mais pesado. Tudo se torna mais leve quando a relação entre elas se consuma. A pintura flui, a narrativa, os sorrisos, e essa alegria invade o olhar delas. Isso logo se perderá; esse amor é proibido, o fim, inevitável. O que se torna claro e se antecipa ao desfecho de Retrato de uma Jovem em Chamas, quando o comentário de um homem curioso sobre um quadro exposto por Marianne revela o que o filme é: uma releitura do mito de Orfeu e Eurídice.
Marianne é Orfeu, personagem que encanta com sua arte, seduz, liberta. Aparentemente aleatórias, destoantes da dita austeridade do filme, suas visões do fantasma de Héloïse são como a última visão de Orfeu para Eurídice, quando o músico-poeta descumpre as condições impostas por Hades e o deus grego reivindica de volta a alma de sua amada. Inevitável. Impossível. Resgatar a amada do reino dos mortos ou de um casamento arranjado — mas heteronormativo. Fica a memória de um amor efêmero e das notas de um Vivaldi ao cravo — das cenas finais mais belas que uma cineasta pode conceber.
Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio
Gostei da crítica (e do filme), mas por que não considera o primeiro longa metragem dela como sendo o Lírios D'Água?