Nenhum homem é uma ilha. Cada um deles é um universo complexo e infinito. Isso era verdade tanto em O Abismo Prateado (2011) quanto em Praia do Futuro (2014), que guarda marcantes semelhanças com o seu antecessor. Os filmes irmãos de Karim Aïnouz têm um norte bem definido: um protagonista solitário passeando por uma narrativa dissolvida, fragmentada, episódica. Após ser abandonada pelo marido, Violeta, em história inspirada na letra de Olhos nos Olhos de Chico Buarque, sofria uma história de abandono, solidão e reconstrução, e é assim o caso de Donato, em Praia do Futuro.
Os longos silêncios de Karim, ritmados pelo lento e constante som de água em seu início e pela austeridade de Berlim em sua segunda metade, constroem um personagem fragmentado, perdido entre a paixão que sente pelo amante alemão e o laço cada vez mais frágil com a família, representada pelo irmão. Karim pauta sua história pela obstinação ambígua de seu protagonista, que sempre parece seguir os próprios instintos para então conviver com as próprias escolhas.
O mergulho do início, quando Donato falha em salvar um turista afogado, denota através da montagem rápida um processo que se dará de forma muito mais lenta ao longo do filme: os personagens arriscam molhar-se em ondas que batem contra rochedos, saltam e nadam em piscinas, passeiam por dentro de aquários. O fascínio pela água, purificadora (Donato brinca com o irmão ainda criança) e perigosa (trabalha como bombeiro salva-vidas na Praia do Futuro em Fortaleza, litoral dito perigoso devido a tubarões e afogamentos) e o ato de mergulhar, sempre filmado como experiência individual, poucas vezes coletiva, utiliza os extremos cromáticos do sol e do calor cearenses e o frio invernal e as neblinas berlinenses e as reações físicas de seus protagonistas – entre nudez e exposição e o agasalhamento e proteção para construir Donato como um homem literalmente capaz de tudo; do afeto ao abandono, do silêncio à extroversão, da agressividade ao encolhimento.
O drama de Donato é tão dissolvido que atravessa o oceano e o tempo, e os olhares de cada indivíduo que encontra são determinantes no processo de autoconhecimento; seja o alemão Konrad, que através da relação afetiva e do sexo desperta seus desejos, suas ambições, sua vontade de deslocar-se; seja seu irmão Ayrton, que procura satisfações na idade adulta sobre o abandono do irmão de forma agressiva e autodestrutiva, que traz de volta a memória afetiva de um “lar” imaginário, do anseio por estabilidade, na retratação por cada elemento que nos desloca contra a vontade.
Esta trindade de instâncias – o jovem tradicional que perde a identidade de família pelo abandono, o motociclista que roda o mundo, experimenta o perigo e cativa suas paixões a sempre estarem em mudança e sempre buscarem a felicidade, ainda que isso custe grande coragem de lidar com as próprias escolhas, e o indivíduo perdido entre dois países, duas culturas, duas pretensões e modelos – compartilham nos três atos os longos planos sequência, os cortes secos e econômicos e os movimentos minimalistas da câmera para antagonizar de forma física e verbal suas dissonâncias.
Como três indivíduos únicos e complexos obrigados a entrar em sintonia funcional com o mundo onde vivem (apesar de forma recorrente encontrarem-se sozinhos e sem objetivos definidos em seus ambientes), Donato, Konrad e Ayrton são unidos não por onde são nobres, moralizantes, inspiradores, com atos heróicos, sacrifícios; mas por onde são comuns, ordinários e similares, praticando ações prosaicas, confusos com a paisagem.
Quando seus protagonistas emergem de seus respectivos mergulhos e passam a compartilhar seus planos, vem a questão do motociclismo, da velocidade – ou, como é o terreno do cinema, o movimento. Konrad abre o filme junto a um amigo pilotando pela Praia do Futuro de forma frenética; Ayrton procura na velocidade a fuga dos indivíduos que o desestabilizam. O perdido Donato é obrigado a emergir e lidar consigo mesmo – para só assim sair do plano estático e incorporar-se ao travelling pelo litoral, onde a areia é coberta de neve e o horizonte encoberto pela neblina. Em direção à natureza, admitem-se finalmente verdades desconfortáveis – até as lentes de Karim, assim como acontecia em O Abismo Prateado não mais encontrarem personagens, ambientes ou símbolos – apenas o deslocamento, infinito, misterioso e necessário.
Ótima crítica!
Ótima crítica Bernardo, parabéns! Gostei bastante do filme, tem planos admiráveis e lida com temas interessantes.
Também escrevi uma crítica no meu blog pessoal, se alguém quiser conferir ;)
http://cinefiloemserie.blogspot.com.br/2014/05/critica-praia-do-futuro.html
O texto é lindo, mas não tem nada que explique a nota 7. 😕
Todos naufragaram no filme, nem Wagner Moura escapou.