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Críticas

Cineplayers

A carência pintada de fel.

7,5
Lee Israel foi uma escritora de sucesso. Surgida no final dos anos 60 como jornalista na 'New Yorker', as duas décadas seguintes foram dedicadas a escrever biografias que lhe renderam prestígio e reconhecimento. O fracasso de um novo livro no fim dos anos 80 foi crucial para transforma-la numa alcoólatra, e realçar péssimas características como a antissociabilidade, a amargura, o distanciamento dos pares, o sentimento de traição sofrida. Cada vez mais reclusa, Lee perde o emprego e o pouco apoio que recebia graças a seu temperamento irascível. A beira da falência no entanto, Lee descobre um talento insuspeito ao vender um bilhete que Katherine Hepburne tinha escrito para ela. Se as pessoas colecionam e pagam pequenas fortunas por material como esse, porque não forjar artigos raros e nunca escritos por artistas, pensadores e escritores e sair do buraco com essa ideia?

Esse mote do segundo longa de Marielle Heller (o primeiro é o surpreendente Diary of a Teenage Girl) é obviamente inspirado em fatos ocorridos ao longo de dois anos na vida da escritora no início dos anos 90, e também é um longa que opera nas raias de uma melancolia crescente, que se transforma em depressão e molda duas vidas, que se entendem como eternamente sendo trapaceadas pela vida real, que as abandonou. Para tanto, vão dobrar a existência às suas demandas, mesmo que suas carências nunca sejam supridas. O filme tem bom humor (a presença de Melissa McCarthy como protagonista com certeza ajudou no resultado), mas o que fica dele é o sentimento de exclusão particular, do olhar pro horizonte e perceber que tudo deu errado lá atrás. Heller vem de uma experiência parecida, também uma adaptação literária, e aqui está em um terreno conhecido.

O filme tem um clima claustrofóbico até nas cenas externas. Talvez por ser demais apegado ao interior de sua protagonista, a ideia do mergulho em um universo parece tão fácil aqui; fácil aqui não é sinônimo de confortável, pelo contrário. A fotografia de Brandon Trost (colaborador da diretora e que tinha feito um magnífico trabalho em Lords of Salem) nos aprisiona naqueles tons de marrom e ocre, sem liberar luminosidade a uma atmosfera onde ela realmente não está. A trilha composta pelo irmão da diretora, Nate Heller, é de uma sensibilidade ímpar, incrível que esteja passando despercebida nos elogios ao filme. Sua empostação, sua presença clara, ajuda um filme muito dolorido, cuja significação pessoal tem um peso bastante considerável.

Ainda que o roteiro não seja de muitos acertos, as características biográficas desse tipo de longa sempre acaba por traí-los em seu espaço temporal, em sua descrição emocional no tempo descrito, impossível negar a qualidade dos seus diálogos e da criação de dois personagens que nascem clássicos. Essa prisão formal da fórmula da biografia se faz presente aqui mais uma vez, as amarras que não fazem o roteiro respirar direito, para além do desenho dos personagens. Mas independente disso, tanto Lee quanto seu "amigo" vivido por Richard E. Grant conseguem ser belas mostragens de empenho de escrita. Duas pessoas amargas, debochadas, irônicas, solitárias e com nenhum traquejo social acabam se identificando e criando uma parceria improvável; os diálogos entre ambos são igualmente impagáveis.

E obviamente que o desempenho tanto de Melissa quanto de Grant elevam o material final. São seus desempenhos que criam laços com a gama de emoções que cada um constrói. Melissa nunca esteve melhor, contida, uma rocha bruta, mas ainda sarcástica, com um olhar que de longe vislumbramos a vontade de doação; ótima sem ele, incrível com ele. Ele é Grant, um dos mais tarimbados atores britânicos das três últimas décadas, nunca conseguiu chance maior para provar seu valor quanto aqui. Não apenas prova como ameaça a todo momento roubar o filme de Melissa. Seu interpretação não apenas é uma aula como se despede de cena com uma cena já inesquecível, olhos marejados e injetados seguidos de uma risada e uma tirada cheia de alfinetes. Uma dupla completa, que vive juntos os raros momentos de carinho que a vida lhes ofertou, nesse filme onde percebemos os problemas, mas que a memória tenta pregar peças quanto ao valor do que é mostrado, e sentido.

Filme visto na Mostra de Cinema de São Paulo

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