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Críticas

Cineplayers

Fantasmas do cinema.

6,5
Maureen (Stewart) trabalha como personal shopper, transitando pelas ruas de Paris em busca de roupas e acessórios para sua patroa, uma celebridade aparentemente não muito importante do glamouroso circuito da moda europeia. Ela também desenha, embora venha dedicando pouco tempo à pretensa carreira artística. Há ainda um terceiro afazer notável em seu cotidiano, que Assayas apresenta antes mesmo dos demais, iniciando um encadeamento de sequências didáticas dispostas nos primeiros minutos da narrativa, selando uma carta de intenções da obra: Maureen, que acaba de perder seu irmão gêmeo, tem o dom de se comunicar com os mortos. Já nessa abertura, precedendo sua primeira investida por boutiques parisienses, a garota percorre a casa que pertencera ao irmão à procura de uma presença, um sinal deste que, ainda em vida, prometera comunicar-se com ela diretamente do mundo dos mortos. Recebe em troca, entretanto, apenas o vômito de um espectro irreconhecível, ação que é sucedida pelo início de uma pesquisa sobre as possíveis origens da arte abstrata e, finalmente, pela ida às compras. 

Fantasmagoria, abstração e materialismo formam um conjunto de keywords que norteiam Personal Shopper. Os diferentes núcleos narrativos estruturados pelo cineasta aproximam as presenças físicas em cena – os apartamentos e as ruas da cidade, as roupas e joias adquiridas por essa compradora fantasma, os Iphones e Macbooks, dispositivos de acesso ao campo virtual – e as formas abstratas, constantemente materializadas na imagem a partir de intervenções digitais – os vídeos na tela do computador, a timeline das mensagens no smartphone, ou até mesmo efeitos especiais utilizados para pintar na superfície do filme a forma igualmente abstrata dos espectros. Por essa perspectiva, Personal Shopper se filia a obras como Pulse, de Kiyoshi Kurosawa, para pensar os gestos e movimentos de um mundo materialista cada vez mais estruturado em torno da ausência, possibilitando o contato entre corpos sem que ambos estejam em um mesmo plano físico, e que, pela legitimação dessa ausência no cotidiano, pode esconder, debaixo de vestidos cintilantes e ternos alinhados, verdadeiros indivíduos fantasmas.

Se não há nada de extraordinário no comentário sobre a contemporaneidade – nada que o próprio Assayas já não tenha arranhado antes em Demonlover ou Boarding Gate, filmes articulados sob uma relação direta entre o virtual, a globalização e o cosmopolita –, a novidade de Personal Shopper está então na forma com que o diretor, através de pequenos exercícios de gênero, sustenta essas aproximações, esse seu desejo pela materialização da ausência e pela representação do abstrato em um mundo de essência virtual e, paradoxalmente, tão materialista. Ao mesmo tempo, suas fraquezas surgem de certa conveniência na articulação destes núcleos, que podem verter poderosos fluxos de cena internos, mas recair em seguida em signos superficiais, reiterações ou, diante da necessidade de direcionar-se para sua conclusão centralizadora, em estripulias que vão minando as próprias potências do filme em prol de uma baguncinha autoconsciente atrelada cada vez mais, e muito confortavelmente, à condição psicológica de sua protagonista.

É assim que Personal Shopper, à medida em que exercita diferentes gêneros cinematográficos em torno de uma mesma presença (o horror sobrenatural, o thriller psicológico, e até mesmo, lá pelas tantas, uma breve narrativa de crime), também limita a própria potência de seus núcleos em detrimento desta presença. Cabe dizer ainda que Assayas não é Kiyoshi Kurosawa, como também não é David Lynch; porém, como cinéfilo aplicado e cineasta com um pé firmado no academicismo, joga com as formas e busca no horror sobrenatural de um e nas jornadas surreais e oníricas de perturbação mental do outro algumas referências indiretas, mas sem a mesma potência para a materialização do campo espiritual de Kurosawa, e preso demais à ordem do significante e à superfície natural das imagens e das presenças para permitir que seu desejo pela abstração atinja de fato uma conotação onírica como em Lynch - o que deixa certa proximidade da metade final do filme com as experiências de Cidade dos Sonhos e Inland Empire soando mais como picaretagem conceitual do que como uma narrativa genuinamente funcional e inventiva em suas formulações.

Não significa que, nos melhores momentos, Assayas não demonstre extrema habilidade na composição de suas cenas e atmosferas. As sequências de horror paranormal podem muito bem figurar entre as mais arrepiantes do ano, tanto quanto as longas conversas entre Maureen e o número desconhecido que insiste em comunicar-se com ela por mensagens de celular, de longe a mais bem sucedida das ideias, na qual longos minutos de silêncio são desprendidos para transformar a imagem da tela do Iphone em uma espécie de recorte do abstrato, pelo qual uma sucessão de palavras e frases dita o movimento das imagens e das ações – e quando, enfim, converte-se o abstrato em físico com notoriedade. As conversas durante as viagens de trem e, especialmente, a extraordinária sequência em que um pequeno toque numa função do aparelho transforma uma cena aparentemente banal em momento de puro terror, com horas de apreensão sendo condensadas em poucos segundos de maneira angustiante, são por si só mais fortes que muitos suspenses inteiros por aí.
 
O que aumenta ainda mais a sensação de frustração quando, logo em seguida, todo esse universo representado se desfaz cena a cena, revelando outro traço habitual da contemporaneidade: pela legitimação da ausência, e eximindo-se das responsabilidades, o cineasta fica à vontade para revelar que, por duas horas, acompanhamos nada além de um homem talentoso brincando com sua câmera, produzindo a partir dessas imagens uma espécie de filme fantasma. 

Comentários (2)

Rodrigo Torres | terça-feira, 14 de Março de 2017 - 15:32

ELE VOLTOU!!!!!!!!!!! 😲 \o/

Daniel Dalpizzolo | terça-feira, 14 de Março de 2017 - 16:16

Agora é a tua vez 😎

#voltatorres #vaimengão

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