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Críticas

Cineplayers

Quando a culpa rebenta, o passado martiriza.

8,5

Novamente retratando dramas familiares, o aclamado diretor iraniano Asghar Farhadi não fugiu do âmbito de relações formado em seu longa anterior, o premiadíssimo A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011). Este seu novo projeto fala, entre outras coisas, de separações. Ou da união de outros, mas somente após um divórcio ser legitimado. É em cima de um triângulo que a narrativa alcançará seus propósitos, balanceando reviravoltas e simbolismos que surgem desde o início, a partir de um plano silencioso adornado por intimidades: no aeroporto, um casal se encontra, interage, mas não conseguem se ouvir por conta do vidro blindado que os desunem. Uma vez no carro, agora sim dialogando, lançam coisas nos bancos traseiros e olham para trás: os resquícios suprimidos do passado. É o princípio de um fim.

Para construir os eventos deste O Passado (Le Passé, 2013), Asghar Farhadi elaborou uma construção já conhecida de sua filmografia: uma dinâmica intimista entre personagens através de diálogos, ações e omissões, notabilizando o caos entre os vínculos. Faz isso pouco a pouco, com interrupções ocasionais e enlaces sensoriais enquanto a câmera transita nos espaços, sempre evidenciando a distância daqueles vários envolvidos.

Ahmad (Ali Mosaffa), após surgir na cena do aeroporto, permanece onipresente. É o protagonista que oferece todo o apoio para a sucessão de acontecimentos imprevisíveis. Revelações se acumulam, fica a sensação de que não se esgotam. O tom de suspense se evidencia nas minudências, seja com a taciturnidade ou com a chuva que por muitas vezes banha o elenco transpondo inquietude. A fotografia amena favorece a sensibilidade. Embora alguns planos se mostrem comuns, ganham uma revisitação por dentro da conjuração.

Em Paris, Marie (Bérénice Bejo, encantadora) e Samir (Tahar Rahim) pretendem se casar. Marie foi casada com Ahmad. Ela precisa dele – que agora mora em Teerã – para assinar alguns papéis e finalmente garantir que possa seguir com o almejado matrimônio. Nem tudo se faz dessa vontade, desejos sucumbem diante promessas de felicidade. E o tal passado do título insiste em transtornar, embaraçando os interesses românticos idealizados. Ainda existem as crianças, os filhos que assistem tudo como espectadores, assimilando a realidade por trás da presença de um estranho bem como os comportamentos alterados dos envolvidos. Nesse meio está Lucie (vivida pela jovem e talentosa Pauline Burlet), que ergue-se à medida que a história avança, alcançando verdades insuportáveis presentes no passado como memória ignorada, mas palpitante e devastadora.

O entre quatro paredes se enleva num drama de situações rotineiras e de aspectos insolucionáveis. Faz lembrar, por vezes, do apreensivo Procurando Elly (Darbareye Elly, 2009), filme que deu maior notoriedade ao diretor. Impressionante como ele mantém uma média de intensos e grandiosos filmes que aprimoram uma simetria intransigente sobre pessoas e seus comportamentos. Viabiliza um contraste psicológico através do aprofundamento particular de cada um, exigindo dos atores posturas imponderáveis. Para quem aprecia um dramalhão com teor psicológico capaz de funcionar também como estudo de personagem (aqui de personagens) encontrará do cinema de Farhadi um cinema de experimentação, de observação. O encadeamento de relações multiplica os conflitos que se avolumam. Percebemos as indagações pessoais fragmentadas com moralismo e paixão, dispensando maniqueísmos, ou convenções antagonistas. O Passado simplesmente cresce com o passar dos minutos, cada vez mais rebuscado e visceral.

Asghar Farhadi concentra-se em Paris em uma grande casa afastada dos cartões postais conhecidos. A maioria dos planos são internos, o diretor enclausura todos os personagens. A iluminação rarefeita compreende a harmonia melancólica de seu drama familiar, atingindo um alto grau de identificação devido ao cerne da narrativa não se limitar a uma cultura específica, mas ser global. Aí compartilhamos das angústias projetadas. As óticas definem os fundamentos, o que dá uma profundidade a mais a narrativa, independendo-a de valores ou de personagens específicos. As ocorrências definirão o futuro com o passado a espreita, omisso, enquanto as verdades se delatam.

Associado a tramas engenhosas e flexíveis, desprendendo da característica habitual do cinema iraniano com narrativas mais densas tais quais as feitas por diretores como Abbas Kiarostami, Majid Majidi e Bahman Ghobadi, Farhadi inova e impõe um novo estilo. Os aspectos simbólicos todavia são conservados. Há cenas chave e espertas, como aquela em que Ahmad e Samir ficam opostos na cozinha, um plano se delonga mostrando a dupla retraída, constrangida. Tal sensação atinge o público. Experimentamos a empatia do comportamento em planos longos e tortuosos, desenvolvidos com atributos que dimensionam o talento do diretor em filmar intensos conflitos familiares. As cores esverdeadas favborecem a misantropia nos cenários pouco iluminados. A obra leva à reflexão não somente pelos valores impostos, mas pelos significados de todas as ações e quase que inevitáveis reações. A culpa perdura. O passado atormenta.

Comentários (6)

Lucas Souza | segunda-feira, 12 de Maio de 2014 - 14:17

Excelente texto, mas preciso conferir este ainda...

Rodrigo Giulianno | segunda-feira, 12 de Maio de 2014 - 22:12

Esse Rafinha é meio débil mental...

Ricardo Pêdo | quarta-feira, 14 de Maio de 2014 - 19:32

O link ao lado para o filme A Separação está errado, levando para outro filme de mesmo nome.

Raphael da Silveira Leite Miguel | quinta-feira, 15 de Maio de 2014 - 21:44

Ótima crítica, gostei bastante de \"A Separação\", e esse também parece bem bom, abordando tema semelhante. Acho essa Bérénice Bejo uma linda e talentosa.

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