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Críticas

Cineplayers

A ciranda de Monique.

8,0
Um corredor, uma cortina que se abre. De trás dela sai Erasmo Carlos, anunciando que aquele é um lugar para quem ama, o Paraíso Perdido. Assim se inicia o novo e homônimo longa de Monique Gardenberg, cineasta muito especial que infelizmente cria grandes espaços entre suas produções. Esse é apenas o quarto filme de uma carreira iniciada há mais de 20 anos, e o primeiro em ONZE anos (o último, Ó Paí, Ó), o que só sua persona como diretora também de teatro justifica, mas não diminui a ausência. Uma carreira pautada por primeiramente uma característica que se repete aqui, a habilidade com numerosos e excepcionais elencos, que comanda sempre com extrema competência. Mas Monique é muito mais que uma diretora de atores, embora sua veia teatral tenha realçado isso.

Monique tem também o poder de captar a essência do universo retratado quase a se metamorfosear por entre seus espaços e descobertas, seja ele a cena multicultural baiana, a prosa requintada de Chico Buarque ou até os meandros de uma investigação jornalística que burila códigos de ética. A diretora de Jenipapo é uma voz que faz falta nesse momento de acertada exposição da presença feminina atrás das câmeras, e sua experiência em diferentes frentes acabou também criando uma facilidade de se mover entre a ficção e o conceito de espetáculo, que ela já flertou no longa anterior e que aqui é elevado a personagem.

Paraíso Perdido é o principal cenário do filme e também seu esqueleto, uma espécie de árvore genealógica que sustenta seu grupo de personagens e os mantém unidos. A partir desse cenário todas as relações serão construídas, estabelecidas e futuramente modificadas. A boate tem um caráter melancólico que combina com a teia assumidamente novelesca que Monique apresenta, desdobrando afetos e emoldurando uma colcha fina que permeará ações e reações, do passado e do presente. Quanto ao futuro, é através desse jogo que o filme estabelece o seu, tentando e conseguindo acarinhar cada um daqueles seres.

Odair é um policial que salva Ímã de um ataque homofóbico, e esse é seu passaporte para o universo paradisíaco-familiar que Monique habilmente constrói. Ao som do samba-canção, do brega e do cancioneiro mais desbragado já produzido no país, a lente de Pedro Farkas elabora as luzes e os movimentos sinuosos com a qual a câmera passeia pelo espaços criados por Valdy Lopes, que captam não apenas a essência do lugar como de cada mínimo detalhe em cena. Em confluência com o incrível figurino de Cássio Brasil, a luz de Farkas emoldura muito do entendimento da direção e nos remete muito rapidamente ao propósito da produção, o lugar que deve ocupar e as intenções de Monique com o mesmo. O filme só será apreciado corretamente se o mergulho na proposta for total, a outra opção a isso seria não embarcar no molde que aquelas músicas fazem de toda a parte técnica e das opções de Monique para a narrativa. 

A cena do brega já foi protagonista de alguns longas nacionais (Vou Rifar meu Coração Amor, Plástico e Barulho, mais notadamente), e aqui essa cena adquire mais interiorização e a junção do samba-canção também no molho, não apenas como ambientação do roteiro mas também dando relevo a diálogos e personagens, tudo em prol de criar um corpo característico ao filme, onde toda a parte técnica realça esse viés e o elenco invejável reproduz essa demanda do filme. De Julio Andrade a Erasmo Carlos, de Humberto Carrão a Seu Jorge, de Lee Taylor a Felipe Abib, todos estão especiais. Mas é o elenco feminino que evoca esse universo de frente: Hermila Guedes, Malu Galli, Julia Konrad e o terceiro desempenho espetacular em 2018 de Marjorie Estiano (que faz dela o Nome do Ano no cinema brasileiro) é um quarteto destemido em cada fotograma, repleto de nuances, de potência, de impacto mas também imerso em sensibilidade.

E um capítulo à parte é preciso ser aberto para Jaloo. A estreia no cinema do cantor paraense é uma das muitas apostas de Monique (Konrad veio de Malhação para essa estreia no cinema) e é das figuras mais hipnóticas dessa safra. Aliando uma voz única, uma pegada musical completamente diferenciada e que já é um diferencial próprio, Jaloo é uma força atraente demais e o filme é embevecido dele. Sua presença ressalta tanto o lado musical do filme quanto as fragilidades muito humanas que ele emprega a seu Ímã, talvez um dos nomes mais acertados do nosso cinema recente. Seu poder de atração ecoa em todo o elenco e no próprio filme em si, ao mesmo tempo que não é nada egoísta e acaba dividindo holofotes com cada ponto de luz que emana do filme, e são muitos.

Monique ainda tem aqui aquela capacidade cada vez mais rara de encerrar um longa no momento perfeito, uma cena poética e emblemática da amplitude e união daqueles seres unidos numa ciranda coletiva de dores e implosões que se repetem e alimentam umas das outras, que mesmo esquecendo dois personagens pelo caminho ainda assim aponta que não haverá solução sem sensibilidade, união e empatia.

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