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Críticas

Cineplayers

Um filme difícil, mas também uma obra-prima em preto-e-branco de Dreyer.

10,0

Há toda uma mítica em torno do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Muitos consideram seu cinema, de longos e lentos planos-seqüência, insuportável, difícil a beira do irracional por conta de seu rigor excessivo e perfeccionismo. Já uma grande leva de críticos o endeusam a ponto de compará-lo aos grandes mestres do cinema da primeira fase, aqueles que passaram do mudo para o falado, como David W. Griffith e Sergei Eisenstein. Contribui para a aura o fato de sua carreira ter sido um fiasco e de uma de suas atrizes, Maria Falconetti, ter ficado louca depois de ter filmado sua obra mais conhecida, O Martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne d'Arc, 1928) - o diretor, para conseguir o olhar desesperado da personagem, trancafiou a atriz numa cela por uma semana.

Carl Dreyer teve seis de seus 14 longa-metragens lançados recentemente pelo selo Magnus Opus. Traz três de seus filmes mudos, A Quarta Aliança da Sra. Margarida (Prästänkan, 1920), o citado O Martírio de Joana d'Arc e Michael (Mikaël, 1924), os maiores fracassos, O Vampiro (Vampyr, 1924) e Dias de Ira (Vredens Dag, 1943), além de obras-referência para outros grandes cineastas: A Palavra e Gertrud (idem, 1964).

Os elogios, quando existem, são extremos. André Bazin, diretor da Cahiers du Cinéma, disse que, depois de A Palavra, o cinema poderia se render a cor, pois o que era para ser feito em preto-e-branco Dreyer o fez nesse filme. François Truffaut, ainda crítico na mesma revista, antes de ser tornar cineasta, tentou entender como o diretor conseguiu o tom leitoso de branco em A Palavra e sua beleza fantasmagórica, que casava com perfeição com a história do filme, praticamente um ensaio metafísico sobre religião, crença, estar no mundo e aceitação da natureza humana.

A história é simples. Um fazendeiro viúvo, religioso, tem três filhos. O mais velho é ateu. O mais novo quer se casar com a filha do alfaiate, mas ela é de outra religião e o pai dela não permite. O do meio, para não fugir da sina de rebelde, foi estudar para ser padre, mas, remoído de dúvidas, é acometido de um transe teosófico e pensa que é Jesus Cristo. A aparente loucura do filho é motivo de incômodo para toda a família, que se desmorona quando a mulher do filho mais velho, Ingrid, morre ao tentar dar a luz ao filho. É quando o louco, pensando ter os poderes de Cristo, tenta ressuscitá-la.

Dreyer era religioso fervoroso e adaptou uma peça do padre Kaj Munk, assassinado pelos nazistas - parte da crítica impôs a Dreyer o estigma de cineasta a serviço do protestantismo. Obcecado com detalhes, foi à loja de roupas com a atriz Birgitte Federspiel para comprar as meias que ela usaria em cena. Não permitia que seus atores se movimentassem em cena nunca mais do essencialmente necessário – e isso poderia significar apenas uma leve inclinação na cabeça durante vários minutos. Esse zelo irascível é considerado o maior responsável por seu fracasso no cinema (vivia das rendas de um teatro público que dirigia) e, claro, sua marca indelével como diretor.

A Palavra é uma epifania e, para quem conseguir entrar no ritmo do cineasta, um dos grandes filmes do cinema. Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1955, foi considerado, à época, ultrapassado, pois, segundo os jornalistas que cobriram o evento, ele tinha uma estética que remetia ao cinema mudo. Sem dúvida, Dreyer com seus planos miraculosos, lembra os quadros maneiristas e o jogo de sombra e luz de Rembrandt e Velásquez em sua composição, de perfeição formal fora do comum, dos melhores diretores da fase áurea da década de 20, como Murnau e Fritz Lang.

Mas não há motivo para se ter medo de Carl Dreyer. Seu cinema não é tão terrível assim. Apesar de lento, tem senso de narrativa. O diretor não cede a nenhum apelo dramático (não usa música para reforçar as cenas) e nunca acelera a trama, nem nos momentos mais angustiantes. Os diálogos, tensos e densos, são também bonitos e sensíveis. Seus atores declamam o texto impassíveis, o que causa distanciamento com o público, é verdade, mas permite uma profunda identificação com os temas propostos sem tomar para si nenhum ponto de vista.

De qualquer forma, há pelo menos um grande motivo para ver esse filme: tem uma das mais belas fotografias da história do cinema. Há também a cena do pai procurando o filho louco pelas belas planícies dinamarquesas. Ou a cena do alfaiate chegando com a filha ao funeral. Todas de uma beleza, não só plástica, mas também sensorial, que faz de Ordet um momento único e inesquecível.

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