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Críticas

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Melancólico e nostálgico, 'Paixão de Bravo' é a analogia entre a vida no rodeio e as relações afetivas.

7,0

Logo de cara, as primeiras imagens de Paixão de Bravo exibem um desfile de rua, o gosto do público pelo espetáculo, a tradição cultural das pessoas em servir de audiência perante exibições e eventos que flertam com o irreal, o risco desafiador e o sobre-humano. Em seguida, preenche a tela um grande outdoor publicitário que anuncia em letras garrafais: “venha ver o show mais selvagem da terra!” De que se trata? A imagem que ilustra o texto no outdoor deixa claro: o cowboy relutando para manter-se sobre o animal feroz - um rodeio.

Partindo do submundo dos rodeios, o diretor Nicholas Ray fez em Paixão de Bravo um cinema que faz mergulho na subjetividade do homem, nas suas características mais primarias e instintivas - como seu insaciável desejo por desafiar a morte e a busca por auto-afirmação, dominação e poder. Este longa-metragem de 1952 conta a história do vaqueiro Jeff McLoud (Robert Mitchum), um famoso e experiente cowboy de rodeio que já em sua decadência, depois de 20 anos, retorna à casa de infância, como que num reencontro consigo mesmo, tentando resgatar a identidade num estágio onde ainda não havia sucumbido às tentações e as armadilhas que a vida havia lhe reservado.

Curiosamente, por vias traiçoeiras do destino, lá irá encontrar Wes Merritt (Arthur Kennedy), um ardoroso fã seu que está disposto a deixar seu trabalho medíocre e mal remunerado de peão de fazenda para arriscar-se no mundo dos rodeios, fechando uma parceria com Jeff, que promete um treinamento para torná-lo apto a participar como profissional sobre os ferozes animais. Porém, entre eles, há Louise (Susan Hayward), esposa de Wes, que é contra a idéia, mas que visivelmente desperta um grande interesse em Jeff – e uma estranha reciprocidade afetiva nasce ali. E é a partir desse triângulo amoroso que irá se desenrolar uma ambiciosa jornada em busca de fama, dinheiro e, principalmente, por glória no mundo performático do rodeio, mas que evidentemente irá trazer suas colateralidades.

Como é mais do que típico no cinema de Ray, os personagens principais parecem deslocados do mundo, e, como na vida, há um elo que os liga apesar de suas aparentes disparidades: unem-se por seus problemas semelhantes, nesse caso, por sua má adaptação à estrutura social. Ao passo que o protagonista Jeff McLoud perambula pelo mundo na tentativa de encontrar seu lugar, Wes, ingênuo e pretensioso, crê que no rodeio irá arrecadar, em poucas arriscadas, o que levaria uma vida ganhando trabalhando como subordinado, sem levar em conta o provérbio que diz “o que vem fácil, vai fácil”. Já sua esposa Louise, advinda de uma vida difícil de pobreza e solidão, vê em Wes seu porto seguro, apesar de seus defeitos de caráter.

Entretanto, o ponto alto do filme é a química que acontece entre os personagens de Mitchum e Hayward. Seria difícil crer que não haveria nada entre personagens (por consequência, atores) notavelmente tão belos fisicamente. Ainda que distantes pelas circunstâncias (afinal, ela é casada), e as conversas sequer pairarem sobre quaisquer conotações mais apimentadas, fica clara a crescente tensão sexual entre estes personagens de Jeff e Louise. É aqui que o diretor Ray, tomando por base o desejo humano na dominação, exibindo imagens em que homens se regozijam ao imobilizarem terneiros e mostrarem sua força perante cavalos selvagens e touros indomáveis, faz sutilmente e de forma bastante poética uma analogia entre a performance do rodeio e a conquista entre homens e mulheres. Há um inspirado diálogo que evidencia isto. Certo momento, Jeff diz para Louise: “Cavalos são como mulheres. Se ligam em você um pouco por amor, mas em grande parte por medo”. Inteligente, Louise replica: “É mais fácil um cavalo ter medo de você do que uma mulher.” Interessante pensar que o cinema, muito antes de ser a invenção dos irmãos Lumière, era a máquina do fisiologista Étienne-Jules Marey para fotografar com várias imagens por segundo o movimento dos animais, como o cavalo, para estudos científicos. Aqui, da mesma forma, o cinema dedica-se a retratar imagens de touros e cavalos em movimento, mas aqui como metáforas para a arte que o cinema se tornou.

Apesar de ser uma trama bastante regional, focada na contexto típico agrário e rural  sulista dos EUA, ambientada sobretudo nos estados do Texas e do Arizona, a narrativa tem força universal não somente pelo fato de a cultura do rodeio hoje estar devidamente internacionalizada e absorvida até a exaustão, mas principalmente pela abordagem que faz das motivações dos personagens a se inserirem neste mundo do rodeio que, na época, estava mais para um show de horrores que só marginalizados se submeteriam ao risco para ganhar a vida do que para um famigerado modismo country dos dias atuais.

Seja em exemplos de filmes consagrados como Sindicato de Ladrões e Touro Indomável, ou para o recente O Lutador, Paixão de Bravo também consegue trazer à tona toda a densidade dramática inerente à sociedade do espetáculo, e como é ingrata e puro vendaval a vida de quem está na no centro da roda, seja como boxeador, lutador, ou simplesmente como um performer – que na verdade é o que todos são. Seja pelo vício em bebidas, drogas, ou excesso de dinheiro fácil, todas estas linhas de força parecem arrastar seus protagonistas como carros desgovernados.

Mas apesar do alto preço, estes personagens, tais como o vaqueiro de rodeios Jeff McLoud, estão fadados a estarem nos palcos e espetáculos da vida, pois só existem neles – fora de seu habitat, somam-se aos demais errante comuns da vida ordinária. Incorporando uma persona, ganham vida. Nicholas Ray parecia saber disto, e assim o fez, na vida real, com seu próprio cinema – que, à sua maneira, é justamente o anunciado “show mais selvagem da terra.”

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