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Críticas

Cineplayers

A violência não é a doença. É apenas o sintoma.

8,5

Vamos para casa, Johnny.”, diz o personagem de William Devane, após uma sequência de tiros.

Espantosa a capacidade de John Flynn para narrar a desconstrução de mitos neste A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977). Isso foi visto já em seu primeiro trabalho de direção, a obra-prima Na Solidão do Desejo (The Sergeant, 1968): um sargento, dos EUA, que se gaba por ser durão, mas que vive em uma luta interior e amarga contra os desejos por outro homem (temos a ideia do trabalho de oposições como forma de provocar uma mortal incerteza no personagem: ser o que ele de fato é ou o que o seu meio o permite – havendo também a aceitação própria, naturalmente). No caso de A Outra Face da Violência, também lidamos com um militar, porém em outras circunstâncias: o Major Charles Rane retorna vivo (bem como seu companheiro de combate, Johnny Vohden) à sua comunidade após seis anos lutando na guerra do Vietnã, lhe rendendo o tratamento de herói. Somos postos então perante mais um mito: um dos símbolos do orgulho americano travados pelo militarismo, uma das definições para o “american way of life” – o momento inicial é muito interessante, com a multidão feliz pelo retorno dos heróis, estendendo bandeiras do país etc, enquanto Charles e Johnny estão sentados em um jato com indiferença em relação ao que ocorre lá embaixo. Paul Schrader, o principal responsável pelo roteiro, pegou muita coisa de Taxi Driver (idem, 1976) para colocar aqui; seu pessimismo é impressionante – o Major Charles, em seu discurso de retorno, diz que com a experiência “se tornou um americano melhor”, mas o processo pelo qual ele passa no decorrer da narrativa é algo que leva a questionar o significado dessa melhora.

Em tempos em que um filme como Sniper Americano (American Sniper, 2014) é apontado erroneamente como uma exaltação ao belicismo norte-americano, vale a pena frisar que o trabalho de Flynn utiliza o contexto patriótico para questioná-lo, sem recorrer ao didatismo barato que muitos parecem desejar. Tal como o que foi feito recentemente, lá em 77 houve o estudo do humano, do indivíduo, deixando os aspectos mais diretos relativos à política de toda uma nação como formadores de um meio, e os problemas que podem sair daí. Ou seja, não é exatamente um filme político (qualquer discussão no âmbito mais político periga cair em uma ideia muito extrafilme); é ainda sobre a pessoa, fruto de uma grande consequência social e histórica. Existe um campo e contracampo seco, extremamente expressivo pouco após dez minutos; um diálogo simples, construído, sobretudo, por olhares, expondo a particularidade com que a coisa irá caminhar.

Mesmo sendo pouco falado (o mais conhecido de seu diretor), A Outra Face da Violência tem extrema carga de vitalidade e respeito por não recorrer a saídas fáceis para os problemas que propõe aos seus personagens. A construção de mistério crescente é estabelecida pelo silêncio existente nos dois sobreviventes da guerra; John Flynn mostra toda a sutileza que tem, mergulhando a câmera em sorrisos vazios e a palavras mecânicas, fazendo uso da montagem dialética para expor o estado emocional corrosivo existente ali (planos em preto e branco, um método para enfatizar tanto o fator temporal como o próprio estado de ser da figura em cheque). Mesmo que o filme parta da ideia de vingança contra os homens que mataram a família do Major, o espectador não tardará a perceber que a única comunicação que o personagem tem está em seu parceiro de combate: notem que, pouco após a tragédia, o Major praticamente não demonstra emoção alguma; a vingança chega ao ponto de significar apenas o gosto pela guerra, ao invés de desencadear reflexões sobre justiça pessoal. A partir de certo ponto, A Outra Face da Violência torna-se um filme de estrada, abrindo mais possibilidades que estão voltadas ao íntimo de questionamentos existencialistas; é um dos elementos que explicitam o fato de que estamos perante um material que preocupa-se acima de tudo não com a execução da ação em si: a vingança tratada aqui está mais num campo processual; mas ainda assim, não é principalmente sobre isso: a sede de sangue é posta em destaque – se em dado momento imaginamos que o antagonista será aquele caipira de chapéu, o principal cabeça por trás dos crimes, logo nos damos conta de que o foco do Major está no tal de “Automatic Slim”, que se autodeclara, também, um sobrevivente do Vietnã (quase como se fossem velhos conhecidos); é estabelecida uma relação “lógica”, de guerreiro contra guerreiro.

Não ficamos de fora da “brincadeira”, porém; é evidente que a temática permite a participação máxima do espectador. De forma alguma somos iludidos de que não se trata também de uma jornada de justiça particular, é então que é compartilhado conosco um bom grau de sadismo e jogadas participativas através dos mínimos detalhes da lente de seu diretor: o protagonista esvaziando uma caixa de cigarros e logo após tentando colocá-los de volta com a nova “mão”; o mesmo é feito depois, quando o mesmo coloca balas dentro de uma roleta. A obsessão do homem é tão grande que a personagem de Linda Haynes é utilizada no processo como uma isca e logo após é descartada; isso fecha qualquer ideia de lugar-comum que poderia se ter acerca do Major (eu realmente acredito que você esperava que saísse um romance daí); a maioria dos momentos em que é possível sentir um pouco de vida são reservados na relação de amizade com o personagem do jovem Tommy Lee Jones - a comunicação é constantemente feita por palavras em comum e um silêncio mútuo compreendido. Existe uma considerável diferença de idade entre William Devane e Tommy Lee Jones que cria uma percepção quase de um pai para com seu filho; o clímax que o diga: pela primeira vez percebe-se o sentimento de euforia em Johnny (que desde o início diz que “Esses canalhas merecem morrer”) ao ser chamado para participar do assassinato dos caipiras; quase como se estivesse, finalmente, em casa – criando diálogo principalmente com uma das cenas do final, com seus familiares conversando sobre diversos temas; a câmera dando close em rostos, pessoas que conversam sobre produtos de nacionalidade americana, japonesa (aliás, bem interessante esse toque – isso ocorre sutilmente a todo o momento da narrativa, essa questão cultural, que trata tanto em nacionalidades como em aspectos relativos à moda [mini-saia, a palavra “groupie” etc, o choque depois de tanto tempo em um cenário de guerra]), futilidades etc., etc., enquanto percebemos que duas estão ali no meio fazendo presença física, mas sem demonstrar qualquer manifestação de importância com o que vem sendo discutido. O clímax é concluído de forma rápida, seca, e por isso mesmo brutal (lembranças ao filme do Scorsese); até que a figura dos dois companheiros simplesmente sai do local, um amparando ao outro - como se estivessem ali simplesmente para tomar umas cervejas e voltar para o estilo de vida comum.

Estamos perante uma obra estranha, pois mesmo tendo um dos melhores estudos de personagens da década de 70, existem alguns problemas de narrativa que não podem ser ignorados: se por um lado a tensão depressiva de nosso “herói” é o fator que desencadeia a força, por outro lado essa mesma característica provoca empacadas no corrimento. Linda Haynes com sua interessantíssima personagem (em muitos momentos até mais interessante que o próprio protagonista, como na cena de testes de tiro no lago) dá ao filme uma consistência misteriosa, fechando um ciclo de personalidades negativas; em vários momentos ela questiona o motivo do silêncio do outro – ela própria deveria saber a resposta, sendo que é tão maldita quanto ele, em uma carência desgraçada, buscando amor em uma estátua seca. Fica compreensível a secura com que a mesma é subtraída do enredo, mas também fica o sentimento de que poderia ter sido melhor aproveitada depois de toda a apresentação. Isso porque, relembrando Na Solidão do Desejo, no alto do estudo repleto de conflitos de um triângulo amoroso fora do convencional, Linda no cinema de John Flynn é tratada praticamente como se fosse a junção do Sargento e de Solange (a namorada do rapaz desejado pelo seu superior): ao mesmo tempo em que existe o amor platônico, puramente idealizado, a figura feminina provoca conflitos na relação do universo masculino do personagem. A imagem mais íntima talvez de todo o filme está naquele momento em que os dois se descontrolam e brigam, com William Devane no final das contas ajoelhado no chão de terra, com o plano fechado nele entre ervas daninhas, até que  Linda se comove com a situação e vai ampará-lo (“Charles... Sou a única coisa que tem...”, ela diz, e o abraça). É a figura do “americano melhor” que nos é deixada: a do homem solitário.

Comentários (7)

Nilmar Souza | sexta-feira, 20 de Março de 2015 - 16:09

Espetáculo de filme, o clímax por si só; é um evento. Segundo melhor do Flynn. E antes de abrir já sabia que o texto era do Victor .. hahaha

Tá com tudo cara, vê se continua nesse ritmo. rs

Victor Ramos | sexta-feira, 20 de Março de 2015 - 17:13

Obrigado, meus queridos! rs

Acho que esse só fica atrás de Na Solidão do Desejo também, mas tem um conjunto bem sólido aí. Vou rever os outros que faltam dar nota por aqui.

Josiel Oliveira | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 21:46

A comparação com Taxi Driver é inevitável, bela crítica! Realmente consegue ter um forte conteúdo político ao tratar do indivíduo com tamanha complexidade.

Ted Rafael Araujo Nogueira | terça-feira, 24 de Março de 2015 - 04:40

Ótima crítica Vctor Ramos. Filmaço. Interessante demais a constituição moral de Rane, onde sua frieza é tratada como caractere por vezes comum aos percalços da guerra. Uma forma de resisência mediante os traumas percorridos. Político em seu plano de fundo somado ao estudo intimista do american dream vendido por lá.

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