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Críticas

Cineplayers

Atuações memoráveis, grande ambientação e textos inspirados. Um grande filme.

8,5

Logo nas primeiras cenas de Onde os Fracos Não Têm Vez, uma enorme sombra negra avança sobre a paisagem seca do Texas. É uma imagem alusiva do próprio filme e suas personagens que tem as vidas, de repente, devassadas por uma tempestade de violência em diferentes graus. Marcando o retorno do brilhantismo dos irmãos Ethan e Joel Coen (que assinam direção, edição, produção e roteiro – adaptado do romance de Cormac McCarthy) após alguns questionáveis exercícios de estilo (vide O Amor Custa Caro e Matadores de Velhinha), esse novo filme é um thriller western incisivo e eficiente, como só os grandes filmes o são.

Josh Brolin é Llewelyn Moss, soldador e ex-combatente da Guerra do Vietnã, homem comum que depara-se, em um dia de caça no deserto, com o que parece ser uma chacina resultante de uma negociação falida de vendas de drogas. Ao averiguar o local, Moss encontra uma valise contendo alguns milhões de dólares. O que, de início, parece ser a sua glória, em pouco tempo se tornará a sua tragédia, pois, no seu encalço estará Anton Chigurh (Javier Bardem), uma figura psicótica e com um grau de persistência e crueldade muito, mas muito acima de qualquer normalidade. Essa perseguição é o motor do filme, incrementada com a presença do desencantado xerife local Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), que tem de encontrar Moss antes que o pior aconteça. Porém, mais que uma peça extra num jogo de gato e rato, Tom Bell é o olhar arguto e fatalista sobre os tempos negros que começam a se instalar. É ele que coloca, às claras, o discurso do filme. Sim, porque mais que um thriller, Onde os Fracos Não Têm Vez é um ensaio sobre a violência.

Logo no início, o filme já deixa delimitada a sua ambivalência. Ao começar com uma narração em off de Tom Bell que mais é uma divagação acerca dos novos dias, tão diferentes daqueles de outrora, em que nem ele, o xerife, precisava carregar uma arma, o filme exala reflexão, embalado por imagens belas e calmas, mas um tanto agourentas, do amanhecer no deserto. Logo em seguida, de imediato, Javier Bardem explode em cena durante um assassinato explícito e atordoante, daqueles que de tão naturalistas, fazem o espectador quase sentir as dores da vítima. É nesse momento rápido, direto e nauseante que se demarca o outro compasso do filme: a perseguição que se iniciará alguns minutos a frente não teria tanto poder se esse algoz não fosse tão incisivamente escancarado. E a atuação de Javier, quase em êxtase, segurando e esgoelando a vítima enquanto ela se debate, é fundamental para isso. É a personificação da violência insana que vai se abater sobre aquele lugar. As cartas estão, pois, na mesa: violência e reflexão.

Mas antes de continuar falando do filme em si, cabe retornar um pouco mais a Javier Bardem e seu Anton Chigurh que já figura, sem a menor sombra de dúvida, entre os vilões máximos do cinema. É indiscutível a competência da interpretação de Javier – e suas premiações às pencas são justas –, mas, além disso, deve-se ressaltar o trabalho de concepção mais amplo da personagem. Vale frisar desde a caracterização de início engraçada de tão peculiar de Chigurgh com sua arma de ar comprimido e seu penteado bizarro (o que só reforça o assombro ao lhe conferir um tom meio mítico, irreal, anormal) até sua ética e princípios próprios, colocados em uma cena ameaçadora cujo diálogo foi escrito de modo brilhante exatamente por não deixar transparecer esses tais princípios, mas apenas mostrar que eles existem e que, de tão subversivos e extremos, não são possíveis de chegar de maneira lógica ao espectador. E também aí está embutida certa incompreensão pela violência que permeará todo o filme. São, portanto, uma série de fatores, além de Javier, que carimbam Chigurgh em quem assiste ao filme. No entanto, assim como Chigurgh está além de Javier Bardem, Onde os Fracos Não Têm Vez também está acima de Chigurgh. É evidente que ele é seu símbolo maior, mas esse não é o filme de um vilão.

O trabalho dos Coen na concepção e desenvolvimento do filme é formidável. Mais que a soma de partes e idéias (apesar de incontáveis momentos singulares e inspiradíssimos), Onde os Fracos Não Têm Vez é um todo coeso alcançado através de uma visualização prévia global que o impede de se transformar em uma mera performance de gênero, como alguns filmes anteriores dos irmãos, carregados de virtuosismos fragmentários. Há cenas brilhantes, especialmente as de perseguição, com quase zero de música e totalmente desapressadas, mas que transbordam tensão e expectativa, denotando maturidade e conhecimento sobre o gênero. Porém essa tensão não cessa e é fruto de um tom e uma cadência constantes, o que só aumenta os seus ápices. É claro que além da direção talentosa, o roteiro aqui faz toda a diferença – roteiro, como já dito, também assinado pelos Coen. Seria esse controle sobre todas as etapas de elaboração do filme, o responsável por tamanho entrosamento?

O fato é que esse entrosamento é evidente em vários aspectos, desde a afinação do elenco ao arrancar dos atores emoções das mais viscerais às mais sutis (Woody Harrelson tem um momento fantástico, em que toda sua aparente fortaleza e segurança, se esfacelam frente ao inevitável) passando pela funesta iluminação e fotografia das cenas e (repetindo...) pela tensão impregnada no filme. Existem certos furos, como fato de Moss estar caçando no deserto e não ter levado consigo sequer uma garrafa de água (!) e, depois de ter roubado a valise, voltar de madrugada ao local da chacina (!). Mas enfim, se aquela máxima de que a exceção só confirma a regra for verdadeira, aqui é um momento oportuno de se utilizá-la. 

É, portanto, por toda uma série de fatores, das falas inspiradíssimas ao vilão emblemático, das atuações memoráveis à ambientação, que Onde os Fracos Não Têm Vez já faz parte dos grandes títulos do cinema americano. Mesmo se valendo de uma violência pontual e até caricata, o filme extrapola esse aspecto e coloca em pauta discussões complexas. Tom Bell vê a violência como um trem que, de repente, se descarrilou (“Você não pode parar o que está vindo...”, sentencia o xerife a certa altura do filme), como se antes esse trem (a sociedade) andasse quase integralmente nos trilhos. É um olhar nostálgico e atemporal. Toda geração tende a dizer que a seguinte é pior talvez por não entendê-la: associar jovens de cabelo verde com a escalada da violência é, no mínimo, temerário e minimizador. A tempestade que o filme anuncia no começo, sempre pairou sobre a humanidade. Só nos resta desvencilhar de suas tormentas para não ser engolido por ela ou cooptado a ela. O final vago é uma reiteração disso.

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