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Críticas

Cineplayers

À espera de um filme.

3,5
A biografia é uma das formas mais fáceis de fazer um cinema quadrado e ainda assim ganhar elogios, fãs, e quiçá prêmios. Muitas o fizeram, muitos conseguiram se consagrar com uma "boa" e velha biografia típica, a história de um certo alguém de prestígio (ou sem) que conseguiu realizar algo a nível pessoal ou social, que tenha alguma relevância. Há um punhado delas por ano, poucas se salvam; muitas tentam, mas a obrigação de ceder a história real e ao relato de um tempo acabam se sobrepondo até ao mais comprometido dos artistas. Existem exceções à regra que fogem da burocracia, óbvio (Milk de Gus Van Sant, Steve Jobs de Danny Boyle, Shine de Scott Hicks, O Escafandro e a Borboleta de Julian Schnabel, A Queda! de Oliver Hirschbiegel, Selma de Ava Duvernay, e outros), mas elas geralmente servem para comprovar o quão árduo é o trabalho de um adaptador, o quanto o talento de um cineasta e seu roteirista geralmente não se devem à reprodução integral de fatos de uma vida, ou de esquetes empilhadas para construir um arremedo de personalidade.

O cineasta Jérôme Salle vem de um quarteto de produções francesas interessadas em gênero, quatro longas onde tramas rocambolescas de dita espionagem embalavam perseguições de interesses vazios (inclusive é dele o original em que se baseou a infame versão americana de O Turista, absurdo estrelado por Johnny Depp e Angelina Jolie), e pela primeira vez desembarca no circuito nacional com um filme que não faz qualquer diferença a nenhuma cinematografia, pelo simples fato de que ela já foi vista antes. Muitas vezes. Uma bela abertura mostra um avião sobrevoando o oceano, com um efeito de 'lens flares' tão banal quanto eficiente. O avião cai, e o filme retrocede pelo menos 30 anos no tempo, para nos darmos conta que se trata da vida de Jacques Costeau, o famoso oceanógrafo que se tornou cineasta e amealhou Palma de Ouro e Oscars retratando a vida no fundo do mar, enquanto sonhava com uma utopia aquática. Ao seu redor, a família desmoronava; seu filho (o piloto do avião que cai na primeira cena), sua esposa, seu outro filho e um empregado vão a reboque na biografia, e aos poucos percebemos que nenhum deles será mais que um estereótipo no roteiro - menos o filho mais velho, esse será apenas abandonado mesmo, como se nenhuma importância tivesse. E olha que as motivações do personagem poderiam ser as melhores do longa.

O que se espera de uma biografia de um homem tão ligado à natureza como Costeau? Bom, pelo menos um trabalho de luz e fotografia impactante, marcante. Pois não é isso que vamos percebendo, infelizmente. A começar que o filme nem tem tantas cenas de mergulhos no fundo do mar como qualquer um imaginaria, restringindo esses momentos e concentrando sua narrativa a conflitos domésticos repetitivos e nada aprofundados. O lugar confortável de uma biografia banal de um homem qualquer é escolhido por Salle, ao invés de nos entregar o que deveria ser o mais correto: o encantamento daquele homem com o universo que escolheu pra si, primeiro como fonte de poesia e depois como luta pessoal em prol de sua salvação. Mas provavelmente pela dificuldade da tarefa, do restrito conhecimento do diretor com o universo filmado e com as técnicas para maior aprofundamento imagético, além do valor alto que uma empreitada mais voltada para o foco real que a vida de Costeau merecia receber custaria, a escolha final foi por situar sua família e seus conflitos em terra firme com algumas fugas para o mar. Um grande desapontamento, afinal são as cenas que envolvem os mergulhos as mais belas do filme e que o justificam.

Ainda que tenha se cercado de um belo elenco, não há muito a fazer quando seu texto é pobre e tatibitati. Lambert Wilson não tem muito a fazer como o papel central, numa situação completamente bizarra em se tratando de uma biografia; não há qualquer possibilidade de um voo para o ator. Pierre Niney está despontando como estrela francesa de primeira grandeza e seu personagem tem espaço de cena, mas igualmente nenhuma grandeza. Mas o caso mais triste é o de Audrey Tautou, que nunca tem relevância como a esposa do protagonista e vai sumindo de cena, até virar uma espécie de papagaio que repete a mesma frase do início ao fim ("esse barco é a minha casa"), e não, isso não é de uma forma positiva, mas de uma preguiçosa e enfadonha mesmo, carregando numa maquiagem de caracterização sem qualquer motivo. O ator Benjamin Lavernhe acaba de ser indicado a prêmios por 'Assim é a Vida' e poderia ter o melhor papel do filme como o filho deixado de lado, mas em mais um desacerto do roteiro, isso também não é aproveitado.

Ora, quando num filme de elenco talentoso e estelar, protagonizando a história de uma lenda francesa, cuja ligação com o universo marinho teria garantido um visual estonteante, nenhum dos elementos apresentados funcionam, a culpa é de quem? Num quadro claro de acomodação, o contador dessa história Jérôme Salle percebeu o potencial assegurado da produção e relaxou. Mas não adianta ter todas as peças certas em um tabuleiro se você não sabe jogar o jogo em questão. Um trabalho que tinha tudo para seguir todos os passos de todas as biografias que anualmente assolam os cinemas acabou dando um tiro fora do alvo; um filme não se faz da união dos seus elementos apenas. Na certeza de que tinha conseguido solar as teclas mais difíceis (o filme ainda tem a trilha do onipresente Alexander Desplat), Salle preparou o exército e simplesmente esqueceu de batalhar.

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