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Nomadland

(Nomadland, 2020)
7,6
Média
170 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Nomadland: abandono e liberdade

10,0

O lançamento do indie Nomadland, de Chloé Zhao, no final de 2020 foi um verdadeiro acontecimento. Em meio à pandemia, sem perspectiva de salas ao redor do mundo, o lançamento da Searchlight Pictures (um braço independente da antiga Fox, hoje da Disney) rodou festivais e foi direto para a lista de melhores filmes do ano dos principais veículos especializados. Nomadland é um desses filmes que acontecem de quando em vez e que conseguem capturar olhares e emoções tanto por sua história quanto pela forma que é contada. A simplicidade da narrativa e o aspecto quase documental conseguem extrair uma trama bruta cheia de significados, emocionalmente carregada. Não há paz para o espectador. Zhao cria uma história sobre abandono com cores modernas e estruturais e nos apresenta uma alternativa quase melodiosa para escapar dessa estrutura.

O filme possui como background um grupo de pessoas que perderam muito com a crise de 2008 – emprego, moradia – e decidiram trilhar o caminho do nomadismo pelo país, morando em Motorhomes. Abandonados pelo sistema, que optou pela recuperação das empresas que foram responsáveis pela própria bolha imobiliária, e incapacitados de viver às custas da Seguridade Social, mesmo após anos de trabalho, essa massa de trabalhadores cruza o país em busca de empregos temporários e sazonais. Muitos, já idosos, são obrigados a abrirem mão de toda materialidade que representou sua vida passada, levando apenas o que cabe em suas VRs.

A trama segue a trilha da protagonista Fern, encarnada por uma incansável Francis McDormand, que é obrigada a deixar sua casa em um conjunto habitacional para trabalhadores em 2011, quando a indústria local de Nevada colapsa. Na casa dos 50 anos, viúva e sem filhos, Fern parte em sua van em busca de emprego, mas só encontra trabalhos instáveis. No trajeto, conhece pessoas com histórias parecidas, que formam uma espécie de comunidade de nômades modernos, despojados de todo e qualquer romantismo da vida na estrada, tentando sobreviver off-system, e criando uma resistência a esse mesmo sistema capitalista injusto que os colocou nessa situação.

O roteiro de Zhao é adaptado do livro de não-ficção homônimo de Jessica Bruder, lançado em 2017. Todos os personagens que aparecem no filme são pessoas reais que tiveram suas histórias contadas por Bruder. O tom documental do relato de Zhao não é por acaso. Conforme somos introduzidos nesse universo por Fern, essas pessoas contam suas vidas e o que as levou a esse estilo de vida forçado. Bob Wells, youtuber criador do Encontro Anual da Home on Wheels Alliance, no deserto de Quartzsite, no Arizona, atua como uma força mobilizadora que ensina táticas simples para os nômades se protegerem dos perigos, mas também como um importante conselheiro para Fern. Linda May é sua maior companheira de trabalhos temporários. Entusiasta, quase tentou o suicídio após a crise de 2008 que lhe tomou tudo. O nomadismo surgiu pela falta de perspectiva. Swankie, que no filme tem câncer, pensa em formas de dar um fim ao que chamou de uma vida cheia de significados.

A ideia de nômade aqui é no sentido de total falta de esperança, de oportunidade, impossibilidade de se apegar a algo, criar uma raiz por questões econômicas e sociais, não por opção. Isso causa certo estranhamento porque o nomadismo moderno, tanto o hippie quanto o digital, são movimentos vistos positivamente, pela liberdade de conhecer novos lugares e pessoas, bem diferente desse nomadismo forçado. Mas nem tudo é desesperança. Há no texto de Zhao uma força que explicita o encontro dessas pessoas com o nomadismo e seu apreço por ele. Há trabalho duro, mas há também liberdade de seguir seu próprio rumo, o que a cinematografia de Joshua James Richards expressa sem glamourizar.

É ela a responsável por completar a história lacunar de Fern. O cenário é desolador, desértico, árido e arenoso. Fern está sempre no centro de um enquadramento grande-angular da paisagem, a personificação da solidão. A tese defendida por Zhao versa sobre o abandono, não em um nível individual, mas macro, social. E a diretora a defende de uma forma grave, mesmo que em alguns momentos beire a doçura. Fern, enquanto uma personagem, encarna esse desamparo, mas também o transcende. Há uma jornada individual relacionada a buscas e caminhos, que acaba culminando em um encontro catártico com a natureza. Ela, segunda protagonista da história, é cruel e amável, e, como uma mãe, nunca desiste.

Fern encara ao longo do filme medos quase instintivos, mas sua disposição pela vida, e a forma leve como a encara é tocante. Esse talvez seja o mais importante trabalho de McDormand em termos de entrega a algo literalmente concreto, poético e vaporoso. Foi a atriz que comprou o os direitos do livro e escolheu Zhao para dirigir. Sua personagem fictícia foi construída em meio a nômades reais e McDormand pareceu ter submergido completamente. Um projeto simples, delicado, tocado por mulheres ao longo de anos dificilmente ficará sem um Oscar. Em um dado momento, Fern diz que a vista da janela de sua antiga casa no conjunto de trabalhadores dava para o deserto, para o infinito. Talvez isso explique sua relação com a natureza. Mas a vista da janela de Nomadland dá para um lugar sombrio da sociedade americana, algo que necessita ser refletido em todo o seu espectro.

Comentários (2)

Alan Nina | sábado, 17 de Abril de 2021 - 12:10

Bela crítica. To com o ódio da Frances McDormand, atuação perfeita, mas queria tanto que a Vanessa levasse o Oscar...

Walter Prado | sábado, 17 de Abril de 2021 - 16:34

O pior é que não vai ser nenhuma das duas, vai ser Davis ou Mulligan...

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