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Críticas

Cineplayers

Vertendo realidade em ficção.

6,0
Herman Melville é um escritor em crise que precisa de uma nova história, não somente por uma questão profissional ou financeira, mas principalmente porque precisa provar para si mesmo que é um verdadeiro autor. Thomas Nickerson é um amargurado ex-baleeiro e único tripulante ainda vivo da expedição do navio Essex, feita há mais de trinta anos e emblemática pelos relatos extraordinários que compõem a sua fama. Um tem o que o outro precisa. Nickerson foi testemunha ocular da relação conturbada do capitão George Pollard e do primeiro imediato Owen Chase, assim como da perseguição de uma baleia cachalote gigantesca à tripulação do Essex. Melville e seu fascínio pelo mito que se formou em torno da famosa baleia branca desperta em Nickerson a necessidade de desabafar sobre os meses terríveis que passou no mar durante a maldita expedição, algo que nunca fez em toda sua vida.

Como todos sabem, esse relato verídico serviu de base para que Melville viesse a escrever um dos romances mais importantes da literatura mundial, Moby Dick, um caldeirão de gêneros literários abrangente, que mescla relatos verídicos com passagens ficcionais, além de misturar influências narrativas que vão de Shakespeare a Homero, passando nesse meio até pela Bíblia. Em No Coração do Mar (In the Heart of the Sea, 2015), o diretor Ron Howard se volta não exatamente para uma adaptação de Moby Dick, mas sim pelo processo que resultou no nascimento dessa grande história, quando Melville recolheu o depoimento de Nickerson. 

O primeiro acerto da produção foi evitar adaptar diretamente Moby Dick, um romance grandioso demais e complexo demais para os limitados talentos envolvidos. O enfoque na expedição real do capitão Pollard e a atenção dada a sua conturbada relação com o primeiro imediato Owen Chase garantem algo que pouco se vê hoje no cinema, mas que tem um apelo irresistível: uma boa história de pescador. A ficcionalização de fatos é, afinal de contas, uma das maiores belezas não só do cinema, mas do ato de se contar boas histórias oralmente, que com o passar dos anos vão ganhando novos contornos, adendos e grandiloquências de acordo com a imaginação e bel prazer dos contadores que as repassam. Quando tudo se passa no mar e envolve pescaria, então, o prazer é multiplicado, dada a fama dos pescadores serem hábeis contadores de histórias (ou talvez apenas bons mentirosos).

O material original dos fatos é um prato cheio para que a trama se desenrole com fluidez. Afinal, estamos falando de uma expedição comandada por um capitão inseguro e inexperiente e assolada pela fúria de um ser de proporções inimagináveis. A cachalote branca não é simplesmente um animal que ataca o navio baleeiro por puro instinto de sobrevivência e proteção, mas sim uma manifestação majestosa e inteligente da natureza e sua selvagem e mal resolvida relação com o homem. A futura Moby Dick parece perseguir a embarcação mesmo quando ela está fora de seu território, como que procurando por um acerto de contas e obrigando Pollard e Chase a partirem para o limite da insanidade quando passam de caçadores à caça. A Essex se torna uma obsessão para a cachalote gigante e, em contrapartida, o animal também vira objeto de obstinação de Chase, no mais puro embate entre homem e natureza.

Os acertos de Howard se encontram principalmente no quesito técnico, que valoriza a aventura enquanto gênero cinematográfico e enquanto herança literária. A beleza da baleia de mais de 30 metros é obsessivamente captada através de diversos ângulos pela câmera do diretor, procurando assim cotar para o espectador a magnitude do animal perante à pequenez dos tripulantes, sem que para isso ela tenha que se revelar por inteiro. Basta um take da cauda monstruosa dela batendo violentamente na água, ou um aéreo plano aberto captando sua passagem por debaixo dos barcos para disparar o coração da platéia ao mais puro estilo Steven Spielberg em Tubarão (Jaws, 1975). Ao mesmo tempo, sua soberania é respeitada pelo diretor, que faz questão de mostrá-la não como um monstro marinho vilanesco, mas como uma manifestação da força e equilíbrio da natureza, como que valorizando a sensibilidade e inteligência que regem a vida e que muitas vezes são esquecidas ou ignoradas pelo homem.

Por outro lado, Howard se perde em sua narrativa, quebrando diversas vezes os momentos de catarse ao intercalar futuro e presente. A dramaturgia dos personagens de Melville e Nickerson é muito frágil e quase chegam a atrapalhar o andamento do filme, tornando-os ao mesmo tempo essenciais e desimportantes. O embate entre Chase e Pollard também é deixado de lado a partir de certo ponto, sendo que a princípio se mostrava o principal arco dramático da história. E para piorar, os conflitos de Chase de deixar a família para trás, conquistar um bom nome e lidar com as lembranças de seu pai são tratadas no piloto automático, como clichês necessários para conferir alguma profundidade ao personagem e assim justificar a entrega de Chris Hemsworth, que teve de perder muito peso e massa muscular para o papel.

No Coração do Mar é sobre a verter realidade em ficção dentro de diversas camadas. Enquanto Melville anota os relatos de Nickerson para seu futuro livro, o diretor Howard inevitavelmente trata-o como um personagem e “anota” suas anotações, dando vida a elas por meio do filme. Ou seja, é um trabalho que faz o relato de um relato, como que repassando uma história que um dia foi verdade, mas que de tão lendária acabou ganhando um ar de ficção com o passar dos anos. É uma sacada legal que capta bem a essência não somente de Moby Dick, ou do cinema, como também da arte de se contar histórias, e não havia lugar melhor para Howard colocar tudo isso em prática do que no intitulado coração do oceano, de onde costumam sair as mais mirabolantes e deliciosas historias de pescador.

Comentários (2)

Cristian Oliveira Bruno | domingo, 06 de Dezembro de 2015 - 20:25

Que belíssima crítica Heitor. Não pude conferir ainda e nem sei se poderei no cinema, mas ainda mantenho a fé nesse aí.

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