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Críticas

Cineplayers

Spielberg rompe mitos em torno de si mesmo e mostra a crueza do conflito palestinos X israelenses em um filme que chega muito perto da perfeição.

9,0

É sabido que Steven Spielberg é, a larga distância, o diretor mais influente do showbiz. As bilheterias estratosféricas de seus blockbusters o elevaram ao mais alto patamar do poder no meio cinematográfico, onde ele se mantém tenazmente, mesmo agora após a extinção da sua Dreamworks. Seu nome já virou marca, slogan. E apesar do desdenho de uns e outros, seu valor como cineasta é inquestionável – eventuais tropeços só vêm confirmar isso, pois poucos outros de estatura semelhante produzem tanto. Sua mais recente realização, “Munique”, é uma constatação pungente de que Spielberg continua com as engrenagens em pleno funcionamento. Mais do que um êxito narrativo-cinematográfico, esse seu novo projeto é uma boa notícia para quem enxerga as possibilidades do cinema além do entretenimento.
 
Palestinos x Israelenses: eis o ninho de ratos onde Spielberg resolveu se meter, um campo extremamente nebuloso, em que qualquer passo em falso é o que basta para acender uma calorosa movimentação de insatisfeitos. Talvez nenhum tema hoje seja tão suscetível a abrir feridas mal curadas, a acordar desentendimentos, a azeitar antigas richas. São os dois lados de um conflito, infelizmente, ainda em curso e sem perspectiva de solução. Pois bem. O fato é que Spielberg, corajosamente, se propôs a enfrentar esse assunto e contribuir para que se entenda um pouco melhor o que move esse conflito em seu desdobramento mais comum hoje: os atentados terroristas (e nem seria preciso dizer que esse interesse é ainda maior no mundo pós-11 de setembro). 

O foco do filme é voltado para a movimentação de Israel para se vingar do ataque de palestinos, membros do grupo Setembro Negro, a atletas judeus durante as Olimpíadas de Munique em 1972. Ou seja, se insere no infindável ciclo de retaliações e revanchismos em que se aprisionam ambos os lados pela posse de uma “porção de terra” – termo bastante simplista para pátria. Avner Kaufman (Bana), ex-segurança da primeira-ministra Golda Meir e membro do grupo Mossad, a polícia secreta de Israel, é um dos recrutados a fim de liderar uma célula que operará na surdina até dar cabo de todos os arquitetos do atentado em Munique. É sobre a sua figura que se concentrarão as ações do longa e é sobre ela também que recairão imensa parte dos questionamentos e debates adoçados pelo filme.

“Munique” é composto de um material muito complexo em todos os sentidos. Além de comprometer-se com uma espécie de metamorfose pessoal do protagonista e de ter um leque enorme de fatos a serem desenrolados, a sinopse ainda trata de um instigante jogo no mundo das espionagem (aliás, nenhum outro filme foi tão bem sucedido, realista  e incisivo ao lidar com a ambigüidade desse assunto), configurando-se como um exercício de poder narrativo para qualquer roteirista.  Sorte que a dupla Eric Roth e Tony Kushner se sai maravilhosamente bem. O filme exige atenção, vontade e um pouco de conhecimento anterior sobre os fatos mostrados é de grande valia, mas ainda assim é louvável a maneira como um material tão bruto e pesado foi lapidado até essa eficiente forma. A aglutinação da narrativa em torno de Avner dá ao filme a sua dose de humanismo, tirando seu peso demasiadamente político. Avner personifica uma espécie de “herói” (embora essa palavra passe longe de uma descrição adequada dessa personagem) porque é nele que a platéia sente as dificuldades, anseios e danos a longo prazo das situações colocadas. As seqüências envolvendo os atentados são outro ponto bem desenvolvido: evitando processos e desfechos semelhantes e sempre carregadas de tensão e imprevisibilidade, elas contribuem muito para a fluidez do filme.

É bom salientar ainda que “Munique” carrega o selo Spielberg: toda a produção é absolutamente impecável em seus mínimos detalhes. À edição cabe a potencialização do roteiro, que na tela, tem seus recursos ainda mais admiravelmente sublinhados, como na intercalação de seqüências e na movimentação durante dos atentados. A arte e a fotografia são de primeira e recriam com brilhantismo a atmosfera dos anos 70. John Williams como sempre dispensa elogios – sua música cabe muito bem, especialmente ao dar cadência às seqüências de ação. Abro parênteses também para comentar a crueza de Spielberg ao tratar das mortes e barbáries acometidas durante a projeção. Se em projetos anteriores ele foi duramente criticado por ter sido frouxo e não ter levado às últimas instâncias os fatos que narrava, em “Munique” essa acusação jamais poderá ser feita. Todo o filme é salpicado por mortes escancaradas, sem desvios de câmera e sem miséria de sangue. É uma fidelidade única em sua carreira e usada em um bom momento, pois serve adequadamente aos seus propósitos agudos de mexer verdadeiramente com o espectador.

Mas esse blá-blá-blá técnico é muito pouco para se definir “Munique”. Quando disse que o filme era complexo em todos os sentidos, me referia é claro também à sua parte técnica, mas seu lado político é o que verdadeiramente o torna difícil. Como incutir reflexões profundas em quem assiste, esquivando-se de maniqueísmos e simples melodramas? Como explicar o que move essas pessoas, o que os legitima? E, sobretudo, como ser imparcial? É a maneira hábil como o filme lida com esses percalços que o torna tão bom. Mesmo centrado sobre a ação de um grupo israelita, o roteiro não deixa de dar voz aos palestinos – há, inclusive, um artifício forçado para que ocorra um encontro crucial entre os dois lados dessa moeda. E nesse campo, o acerto está na decisão sábia de tratarem palestinos e israelenses como absolutamente iguais em sua sangria.

O filme paulatinamente aproxima o grupo liderado por Avner do grupo que executou os atentados durante os jogos olímpicos, preenchendo a projeção com paralelismos e intersecções e configurando o círculo vicioso em que o conflito se encontra. O ato de matar vai aos poucos se arraigando no grupo, que mesmo sem perceber, desvia-se de seus propósitos iniciais, sinalizando com isso uma catarata de mortes e revides que não pára de jorrar. O balanço de “Munique” é apresentar o quadro desalentador de beligerância sem freio em que se encontram palestinos e israelenses – a imagem do quadro final do filme é a prova mais irrefutável desse mal-fadado processo. “Munique” não quer trazer respostas, talvez porque elas não existam. Tentar entender o conflito é tentar entender os meandros do que é humano, envolvendo conceitos espinhosos como lar, pátria, honra. O roteiro, com seus diálogos certeiros até tenta dar uma ou outra visitada nessas questões, mas o que se tem aqui é um espelho sem desvios apontado para a irracionalidade do conflito e, a partir disso, ele torna-se um trampolim para possíveis e desejáveis mudanças de rumo.

Contudo, “Munique” tem também pontos sensíveis a exemplo de seu protagonista. Avner é um ponto mal calibrado desde o roteiro, que não dá a ele muita voz, deixando-o meio que a mercê dos acontecimentos, fazendo-o questionar e se expressar de modo contundente apenas próximo do fim. Soma-se a essa fragilidade a atuação fraca de Eric Bana, que tem cara de boa gente, mas aqui faz muito pouco para a tridimensionalidade de sua personagem. Avner fica muitas vezes à sombra dos outros integrantes do grupo, composto por atores de máxima estatura – aliás, é difícil compreender como um elenco tão bem pinçado conta com um protagonista tão opaco.

Bem, mas o que solidamente importa é a grandeza de “Munique” seja pela sua coragem temática, seja por sua eficiência técnica, seja pelo seu texto apurado. Ele é uma demonstração alentadora de que nem tudo na indústria está ao Deus dará. Spielberg, ao mostrar que não ganha a vida apenas ajudando a vender mais pipoca nos cinemas, prova que a máquina de Hollywood, quando competentemente dirigida pode alcançar resultados fantásticos para a arte cinematográfica e para a sociedade como um todo. O cinema carecia de um trabalho como esse que estabelecesse um nexo, mesmo que simples e macabro, para a onda, hoje ainda mais intensa, de ações terroristas. Sua lição, porém, é ainda mais cristalina e simples: matar-se eterna e mutuamente não faz sentido algum!

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