Coutinho segue ampliando a temática sobre as fronteiras entre os gêneros cinematográficos e sobre a natureza da interpretação.
Depois de usar o palco de um teatro para explicitar as fronteiras entre realidade e ficção, e também para balançar as estruturas do que é real ou fictício dentro da tela do cinema, Eduardo Coutinho segue investigando o jogo de cena, a construção do espetáculo e das interpretações, e desta vez transforma em palco todos os espaços de um teatro, ocupando-os com os atores e suas próprias emoções.
Em Moscou, Coutinho e sua equipe elaboram uma adaptação do livro 3 Irmãs, do russo Anton Tchecov, em conjunto com o Grupo Galpão de teatro, e o desafio está em montar o máximo de atos possíveis da peça em três semanas. E nada escapa ao espectador, nem Coutinho: vemos o encontro entre a equipe de filmagem e a equipe teatral que recebe do documentarista o texto sem saber do que se trata, e assim alguns atores reconhecem a história pelos nomes das personagens, ao mesmo tempo em que são convidados a compartilharem a lembrança mais emotiva que guardam, num exercício que busca fundir as emoções e vivências dos atores a construção dos personagens que aos poucos os vemos assumindo.
Esse exercício também lembra a construção da estrutura de Jogo de Cena e suas várias interpretações das mesmas histórias, mesclando lembranças pessoais e atuações, novamente misturando realidade e ficção. Em Moscou, vale prestar atenção na cena em que o ator que interpreta o único irmão da família de irmãs faz um resumo emocionado da triste trajetória da família perdida em si mesma. Aqui já se mostra também a intenção do documentário, que fala de escombros em meio ao depósito do teatro, sem ocultar a equipe de filmagem mesmo quando um dos câmeras ainda busca a emoção nos olhos do ator, enquanto um novo take é montado. Novamente: tudo está ali exposto para que possamos repensar a construção do fictício, afastado tanto quanto possível a idéia de imitação da realidade, ainda que nos aproximando do texto pela emoção evocada pela interpretação.
Acompanhamos os ensaios e os intervalos de teórico descanso, em que devido ao pouco tempo imposto pela produção o trabalho não para, e assim se monta essa saudável confusão entre os ensaios e as cenas propriamente ditas. O palco, cuja presença no filme anterior do diretor ajudava o espectador a sentir-se dentro do processo interpretativo, desta vez é substituído pelos espaços menos nobres do teatro, que é assimilado como o lugar da vivência e construção dos atores da mesma maneira que a velha casa é o palco das atuações da família russa. Assim, Coutinho mais uma vez nos leva do simples espaço reservado à espectação – a platéia – para dentro do teatro onde o jogo acontece, naturalizando o envolvimento com o processo do qual nos esquecemos quando conscientemente nos deixamos levar pelo filme.
E o grande trunfo de Moscou é justamente essa impureza, os ruídos entre a preparação e a realização do documentário. Pena que acabada a fase de produção, quando passamos propriamente à interpretação do texto e ao desenrolar da história, o filme transforme-se em não mais que a filmagem de uma peça de teatro, perdendo bastante de sua força.
Interessante em sua estrutura e delicado em seu texto, o filme-documentário abriga algumas cenas e depoimentos emocionantes, como o impacto de uma criança ao tocar o avô morto e a cena do casal que dança sob à luz efêmera dos palitos de fósforo, em metáforas sobre a transitoriedade da vida e do amor, entre a transitoriedade do que real e do que é imaginário. Sem o mesmo impacto do trabalho anterior, Moscou ainda assim é fiel e responde a busca de Eduardo Coutinho por seu objeto, pelas possibilidades do documentário e a falsa premissa de que este gênero seja um espaço puro e objetivo para a exibição da realidade no cinema.
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