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Críticas

Cineplayers

Um filme de antíteses, mostrando um dos grandes vilões da história do cinema.

8,0

O Mensageiro do Diabo é um filme que traz à tona diversos dos medos que muitos de nós tínhamos quanto éramos crianças. Medo de perder a família, medo de pessoas desconhecidas, de ter que se virar sozinho no mundo. O filme dirigido por Charles Laughton, alguém totalmente inexperiente na direção, mas que fez trabalhos importantes como ator entre os anos 30 e 60, como Spartacus e O Corcunda de Notre Dame, cria um clima assustador não só para crianças, mas para muitos adultos também. Com a ajuda da maravilhosa fotografia em preto-e-branco, e com um dos personagens “demoníacos” mais interessantes do cinema, este é outro clássico inesquecível que deve ser conferido por todos os cinéfilos.

O reverendo Harry Powell não é bem o que aparenta ser: utilizando-se de palavras da Bíblia e belas canções religiosas, e com a ajuda de seu carisma que consegue conquistar rapidamente as pessoas, ele é na verdade um golpista que se aproveita da situação de recém-viúvas para tirar dinheiro delas. Sua nova vítima é Willa Harper (Shelley Winters), que perdeu seu marido, enforcado por assassinato. Mas esta é uma situação especial para Harry Powell: ele acaba descobrindo de Ben, o marido enforcado, enquanto estava preso na penitenciária por furto de carro, que há na cidadezinha onde morava uma fortuna de 10 mil dólares escondida em algum lugar (para a época do filme era uma fortuna, pelo menos). Assim que sai da prisão, Powell investe sua melhor lábia para conquistar a família de Ben e tentar descobrir onde o dinheiro está. A família conta com duas crianças, John e Pearl, que sabem a localização do que Powell mais deseja, mas elas não estão dispostas a dividirem o segredo com ninguém.

A história é realmente interessante, e o personagem de Powell, através da maravilhosa interpretação de Robert Mitchum, é o principal responsável pelo seu sucesso. Com um rosto agradável e bom de papo, ninguém, a não ser o pequeno John, consegue identificar que por trás de sua máscara de bondade está, na verdade, alguém diabólico. A narração, logo no início do filme, deixa o espectador a par disso (“a raposa na pele de carneiro”), e tento imaginar se o filme não seria ainda melhor, em termos de suspense, se o roteiro fosse mostrando a face maligna de Powell apenas através do tempo. Ainda assim o clima de suspense é imenso, já que Powell  demonstra ser uma figura assustadora para John, que é o único que entende seus reais objetivos.

Mas as qualidades que tornam esse suspense único não acabam no personagem de Mitchum. É surpreendente constatar (pelo menos foi para mim), que um diretor novato na profissão como Laughton tenha conseguido, logo em seu primeiro grande filme (e infelizmente foi também o último na profissão de diretor), realizar um trabalho com uma atmosfera tão perfeita quanto a deste. Claro que isso foi feito em conjunto com o cinematógrafo Stanley Cortez. Ambos criaram um clima, através de ângulos de câmera quase sempre perfeitos (contanto, inclusive, com maravilhosas tomadas aéreas da cidadezinha, coisa rara para a época), e um uso de sombras muito feliz, que engrandece os personagens e fazem muitas cenas ficarem inesquecíveis. A maior das cenas, sem dúvida, é a em que a atriz Lillian Gish, sentada em uma cadeira e com uma espingarda na mão, vigia suas crianças (entre elas John e Pearl, agora já fugidas de casa) na frente da janela, enquanto logo do lado de fora está Powell, sentado em um tronco de árvore aguardando o momento certo para atacar. A tensão, e ao mesmo tempo a emoção (ambos cantam a lindíssima música “Leaning on the Everlasting Arms”), fazem desta cena em particular a melhor de O Mensageiro do Diabo. E há ainda pelo menos outras três cenas magníficas, que não citarei aqui para não estragar qualquer surpresa.

Infelizmente o filme está longe de ser perfeito. E suas fraquezas estão tanto em algumas interpretações quanto no roteiro. A atriz mirim Sally Jane Bruce é uma gracinha, mas o diretor estava correndo o risco ao escalar em seu roteiro uma personagem tão nova, mesmo que necessária. Sally tira boa parte da tensão das cenas em que está presente (e muitas delas são importantíssimas), por não ter expressão. Veja bem, a culpa não é apenas da atriz, já que ela é realmente muito nova para ser cobrada (tinha seis anos durantes as filmagens, provavelmente), além do quê suas falas tornam-se irritantes ao longo do tempo, já que ela não consegue ver o mal em Powell, pois mesmo presenciando esse mal na sua frente,  ela está sempre clamando por ele, o que torna-se irreal e um tanto forçado. Tirando a parte de Pearl, o filme e o roteiro também demonstram fraquezas em outros momentos, muitas vezes fantasiando demais as ações de Powell: ele pode exercer o mal, mas isso não dá à ele a capacidade de desaparecer do nada, na sua frente, como acontece algumas vezes. Ainda assim, o limite do aceitável, para não transformar Powell no estereótipo do vilão, é sempre mantido, felizmente.

Eu já falei antes, mas apenas rapidamente, sobre a parte musical do filme. Ele traz uma trilha sonora incrível (não disputou o Oscar, assim como o filme não foi indicado pra nenhum prêmio importante), desde a música de introdução, “Dream, My Little One, Dream”, até a já anteriormente citada, “Leaning on the Everlasting Arms” (esta de teor religioso, mas não menos bela por causa disso), juntamente com a trilha de fundo, trazem uma incrível força às imagens. Assim como todo o filme, a trilha é uma mistura entre o bem (no filme, as crianças; na trilha, as músicas calmas e alegres, com mensagens de vida) e o mal (no filme, Powell, obviamente; na trilha, notas fortes e graves, tensas). Aliás, tudo dentro do filme parece ser uma antítese, sempre há o lado bom e o mau, como conta uma história do próprio Powell e suas mãos decoradas com as palavras “LOVE” and “HATE”. Uma jogada de mestre do roteiro.

O Mensageiro do Diabo não é um clássico muito conhecido, talvez porque não teve destaque nos Oscars – parece ser uma pré-condição para um filme virar clássico, em muitos casos. O que é uma grande bobagem, claro, já que o Oscar em boa parte das ocasiões não é sinônimo de justiça. Ainda assim, é um grande suspense, e qualquer fã de Hitchcock deveria experimentar, caso ainda não o tenha feito. O personagem central é incrível, a trilha sonora e a fotografia são obras-de-arte, e mesmo com as escapadas e forçadas de barra que o roteiro apresenta (tudo para gerar mais impacto dramático, mas ainda assim são forçadas de barra), é um filme que tem tudo para ficar na imaginação de quem o assiste. Vi ele pela primeira vez recentemente, e não creio que vá esquecer seus principais momentos tão cedo. Mais um que recomendo!

Comentários (1)

Rodrigo Melo | quarta-feira, 04 de Março de 2015 - 03:01

Bela crítica. Esse é um suspense daqueles que te fazem pensar durante um bom tempo. Ótimo filme.

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