Um filme esplêndido na sua parte técnica, mas falho na história pelo seu excesso de melodrama.
Em certo momento da projeção de ‘Memórias de uma Gueixa’, já em sua meia hora final, Sayuri, heroína do filme, tenta pela milésima vez se declarar para a paixão de sua vida, quando novamente é interrompida. Nessa hora, pensei: “Sayuri é praticamente uma Maria do Bairro oriental”! Enquanto uns soltavam novamente um suspiro de desapontamento, outros se contorciam irritados na cadeira.
Sim, o filme é um melodrama. Daqueles bem folhetinescos, típicos das novelas mexicanas. Há a garota pobre que luta contra tudo e contra todos para finalmente vencer e conquistar seu grande amor. Há a personagem malvadona que irá infernizar sua vida. Também não poderia ficar de fora a fada madrinha que irá ajudá-la a enfrentar os obstáculos. Enfim, é a história da Gata Borralheira recontada mais uma vez.
Quando o livro que originou o filme foi lançado em 1997, pelo autor Arthur Golden, Hollywood logo entrou em polvorosa, devido ao sucesso estrondoso de vendas – ficou na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times por mais de dois anos. Um grande épico romântico e exótico resultaria em uma atração grandiosa e de grande apelo. Quem comprou os direitos de adaptação foi o produtor Douglas Wick, que venceu o Oscar por Gladiador e que recentemente produziu também Soldado Anônimo. Ele chamou para dirigir ninguém menos que Steven Spielberg, que depois de várias tentativas, acabou desistindo do projeto por não conseguir conciliar as filmagens com sua atribulada agenda, assumindo somente a produção.
A cadeira de direção então foi parar nas mãos de Rob Marshall, que tinha acabado de finalizar seu primeiro filme, o oscarizado Chicago. Marshall, famoso coreógrafo da Broadway e que demonstrou talento no referido musical, aqui prova que também tem talento por trás das câmeras: é seguro, de senso estético apurado e... convencional, como a história exigia. Uma pena que a roteirista Robin Swicord, de filmes de temática feminina como Adoráveis Mulheres e Da Magia à Sedução, não tenha conseguido fugir das armadilhas do livro e se afundado em clichês chorosos e superficiais.
A história da pequena Chiyo (Ohgo Suzuka, excelente), uma garotinha de uma zona pesqueira do Japão que é vendida pelos pais para se tornar uma maiko (aprendiz de gueixa) na década de 20 do século passado deveria ter sido escrita com menos pinceladas sentimentais e armadilhas irrisórias que apenas detratam o esforço de produção do filme. Afinal, Chiyo sofre com a separação dos pais e com a posterior perda da irmã, come o pão que o diabo amassou ao conseguir a antipatia da gueixa principal da okiya (a casa das gueixas) onde passa a viver, tem seus sonhos novamente destroçados quando vira escrava e, já quase adulta, tem que se superar e correr contra o tempo para finalmente conseguir se tornar uma gueixa lendária, já rebatizada como Sayuri. Então, vem a Segunda Guerra Mundial, mais sofrimento, para enfim o final feliz chegar. Sofrível.
Também não ajuda em nada a escolha equivocada do elenco, que inclui duas chinesas e uma malaia nos três principais papéis femininos, que obrigatoriamente deveriam ter ido para atrizes japonesas. Mas como Hollywood é uma máquina que se destina primeiramente a obter lucro – e nomes famosos para estampar cartazes são os que melhor chamam dinheiro, pelo menos nas cabeças dos executivos, a nacionalidade das protagonistas era o que menos importava. Portanto, para eles, não há diferença entre ser japonesa ou malaia – para efeito de comparação, é como se brasileiros, argentinos e peruanos fossem a mesma coisa. Como agravante nessa confusão toda, as feridas deixadas pela Segunda Guerra Mundial entre China e Japão ainda parecem abertas (tanto que a China proibiu a exibição do filme em seu território sem dar maiores explicações).
Não que seja culpa das atrizes selecionadas. Elas são ótimas! Zhang Ziyi, a estrela oriental de maior ascensão da atualidade, demonstra que realmente pode vir a se tornar uma grande atriz e ter uma carreira digna nos domínios do Tio Sam (e esquecer que um dia participou de A Hora do Rush 2). Ela se sai extremamente bem tanto nos momentos mais dramáticos quanto naqueles puramente físicos e que exigem habilidades específicas, como realizar a coreografia da dança gueixa sobre gigantescos tamancos. Michelle Yeoh como Mameha, a gueixa que ajuda Sayuri a realizar seu grande sonho, é de uma dignidade e transparência visíveis e também brilha. Mas é Gong Li, no papel da pérfida e deslumbrante Hatsumomo, quem realmente impressiona. Li, musa de Zhang Yimou em filmes como Lanternas Vermelhas, de Chen Kaige em Adeus, Minha Concubina e Wong Kar-Wai em 2046 – Os Segredos do Amor, é a grande estrela do Oriente há quase duas décadas, e aqui faz sua estréia no cinema americano em grande estilo. A Hatsumomo de Li é vibrante, multidimensional e inconseqüente. E, por isso, deliciosa. É impossível não ficar indignado com suas maldades, mas também é impossível não torcer por ela. E torcer por vilão é a prova maior de seu grande trabalho.
O papel masculino de maior destaque fica por conta do japonês Ken Watanabe como Presidente, o interesse romântico de Sayuri. Watanabe foi descoberto pelo Ocidente em O Último Samurai e aqui tem poucas chances, assim como todo o elenco masculino, que ainda inclui Koji Yakusho (que despontou no hit Dança Comigo?), como Nobu, melhor amigo do Presidente e que acaba sendo conquistado por Sayuri.
Várias pessoas se surpreenderam com as seis indicações técnicas que o filme recebeu ao Oscar, mas essas nomeações são absolutamente merecidas. O filme é de um acabamento magnífico, tanto visual quanto sonoro. Cenários reconstituídos com esmero, figurinos de encher os olhos (mesmo que criticado por especialistas por não serem muito fiéis), fotografia inspiradíssima da australiana Dion Beebe (que trabalhou com o diretor em Chicago), tudo do que há de melhor. Mas se há algo grandioso em Memórias de uma Gueixa, esse algo é a música brilhante de John Williams. Auxiliado pelo violoncelo magistral de Yo Yo Ma, com quem já tinha trabalhado, Williams entrega seu trabalho mais consistente em pelo menos dez anos. A música tema é de assimilação instantânea e consegue a proeza de ser lembrada dias após assistirmos ao filme.
Com tantos pontos positivos, ‘Memórias de uma Gueixa’ facilmente deixa o rótulo ‘descartável’ de lado e consegue segurar a atenção até o fim, o que é pouco para um projeto desse porte, mas o suficiente para tornar a produção ao menos digna de uma conferida.
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