Derivativos. Sub-prime. Empréstimos hipotecários. Bolha imobiliária. Lehman & Brothers. Bank of America. Merrill Lynch. Até agosto e setembro de 2008, para quem não atuasse diretamente no mercado financeiro, essas palavras não significavam absolutamente nada. A partir dessa data, elas passaram a ser termos corriqueiros no dia a dia das pessoas. Só se falava nisso, dos telejornais até as conversas de bar. A quebradeira de grandes e tradicionais bancos de investimento americanos pegou o mundo de surpresa. Quando o Governo Bush foi olhar o estrago já era tarde e a economia americana, antes toda poderosa, estava a um passo da insolvência. Os EUA reviviam o crash da bolsa de 1929. De uma hora para outra, o dinheiro secou e o receio de uma inadimplência geral se alastrou rapidamente pelas demais economias. O Planeta Terra estava definitivamente menor.
Com a história passando diante dos nossos olhos, era natural que Hollywood abordasse o assunto mais cedo ou mais tarde. De 2008 para cá, no entanto, a produção americana a este respeito se limitou aos documentários Capitalismo: Uma História de Amor (Capitalism: A Love Story, 2009), de Michael Moore, e Trabalho Interno (Inside Job, 2010), de Charles Fergunson, este último vencedor do Oscar na categoria. Margin Call - O Dia Antes do Fim (Margin Call, 2011) é a primeira tentativa de enfrentar o tema pelo caminho da ficção. A empreitada ficou ao encargo do jovem J. C. Chandor. Com um roteiro também de sua autoria, resultado das experiências que viu e ouviu de seu pai, corretor de bolsa por vários anos, e à frente de um elenco incrivelmente talentoso, Margin Call se torna uma das melhores surpresas de 2011.
Ano: 2008. Cidade: Nova York. Endereço: Wall Street. Incrustrado no centro nervoso das negociações financeiras de uma das maiores megalópoles do mundo, somos levados ao interior de uma firma de investimentos. Não sabemos o nome da companhia, mas dá para perceber que o clima no ar é tenso. De uma hora para a outra, os corredores da empresa são invadidos por temíveis executivos, de saias e paletós. Carregam consigo laptops, pastas, relatórios e... más notícias. Nas próximas horas, eles terão que comunicar a demissão de 80% dos funcionários do local. São tantas as pessoas a serem contatadas, que o trabalho tem que ser rápido, objetivo, parecido com o que o personagem de George Clooney fazia em Amor Sem Escalas (Up in the Air, 2009), só que pior. Dentre os escolhidos, está Eric Dale (Stanley Tucci), gerente de avaliação de risco. Apesar de integrar os quadros da corporação há vários, seu desligamento é impiedoso. A partir daquele instante, a senha de acesso ao seu computador está bloqueada. E seu celular, desativado. A única coisa que lhe resta é retirar os objetos pessoais da sua mesa e sair do prédio, ainda assim escoltado por um segurança. Antes de sair, porém, Eric entrega um pen-drive a um de seus subordinados, Peter Sullivan (Zachary Quinto), que contém determinadas anotações nas quais ele vinha trabalhando. Eric pede que Sullivan dê uma olhada naquilo sem antes recomendar: “tome cuidado”.
Naquele mesma noite, enquanto os que se salvaram da degola vão encher a cara na balada, Sullivan aprofunda os cálculos de Eric e chega a uma terrível conclusão: a empresa estava atuando além dos limites de risco aceitáveis para determinadas operações hipotecárias, o que criava uma potencial passivo contábil maior que o seu próprio capital social. Em termos práticos, a persistir aquele cenário e considerando uma possível inadimplência dos seus clientes, a companhia não teria capacidade financeira para honrar com seus compromissos. Daí para a falência seria um passo.
O alerta geral é dado e, rapidamente, os altos escalões da firma são acionados. Em um primeiro momento, Sullivan chama Seth, seu colega mais próximo (Penn Bagdley) e seu chefe imediato, Will Emerson (Paul Bettany). Emerson percebe que a coisa é séria e chama Sam Rogers (Kevin Spacey), que, por sua vez, aciona seu superior Jared Cohen (Simon Baker) e sua assessora Sarah Robertson (Demi Moore). Quando a cúpula percebe a coisa saiu do controle, a solução é chamar o big-boss John Tuld (Jeremy Irons). Durante o espaço de uma madrugada, aquelas cabeças terão que encontrar uma solução para o problema, nem que para isso tenham que sacrificar a empresa, seus funcionários, e o mercado financeiro como um todo.
Margin Call é construído sob a forma de um thriller. A tensão é constante, quase palpável. Nenhum tiro é disparado, não há perseguições de carro, explosões, mortes, muito menos sangue jorrando pela tela. Mesmo assim e, mais que isso, mesmo sabendo o desfecho deste imbróglio na vida real, o público permanece em estado de alerta a cada nova reunião de diretoria, tão nervoso quanto os personagens, curioso e ao mesmo tempo temeroso em saber como aquela enrascada será resolvida.
Não é fácil conseguir esse efeito e os méritos devem ser atribuídos ao roteiro de Chandor. De um lado, ele demonstra ter bom ouvido para os diálogos, todos eles milimetricamente afiados, daqueles em que nenhuma palavra parece ter sido escolhida à toa (repare no duelo verbal travado entre os personagens de Jeremy Irons e Kevin Spacey). De outro, é honesto o suficiente para revelar que o mercado financeiro é um assunto tão complexo que nem mesmo os profissionais do ramo o dominam (Sam, por exemplo, não entende patavina dos gráficos expostos nas telas dos computadores, e Jeremy Irons confessa que o fato de ocupar o cargo mais alto da companhia não tem nada a ver com o seu conhecimento técnico do tema). Tanto é assim que o roteiro faz um humor sobre o fato de Sullivan, a pessoa que descobriu o problema, ser cientista espacial de formação. Chandor mostra também que entende do universo que está falando e revela as agruras e mazelas por trás da profissão.
Por maior que seja o glamour que ela carrega, ao se olhar mais de perto, veremos homens ansiosos (Emerson não consegue parar de mascar o chiclete com nicotina), obcecados por dinheiro (Seth não resiste em perguntar o salário dos seus chefes), fracos (o mesmo Seth chorando no banheiro), e solitários (na hora do aperto Sam recorre à sua ex-esposa). Por fim, Chandor explora bem os elementos visuais, como o clima claustrofóbico das dependências da empresa; a escuridão desesperançosa da madrugada; e a possível redenção que vem com o amanhecer.
Essas características marcantes fazem com que, no formato, Margin Call se distancie de filmes com temática parecida como, por exemplo, Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme (Wall Street: Money Never Sleeps, 2010) e se assemelhe muito mais a O Sucesso a Qualquer Preço (Glengarry Glen Ross, 1992), cultuado filme de David Mamet do início dos anos 1990, que também reunia num ambiente fechado diversos corretores de imóveis que tinham por missão fechar um grande negócio. A comparação entre eles mostra que o trato com o dinheiro, seja ele virtual ou de papel, e o respeito pela ética e pelo ser humano não mudou muito nos quase vinte anos que separam ambos os filmes (a única demonstração de afeto em Margin Call é por um cachorro). Tanto faz se na arena estão se digladiando corretores de imóveis ou do mercado financeiro. O que importa é a grana e o último que sair que apague a luz.
Em certo sentido, o roteiro de Margin Call podia render uma boa peça de teatro (não por coincidência, o filme de Mamet era baseado em uma peça de sua autoria). A maioria das cenas são compostas por diálogos entre duas ou três pessoas (as vezes até mais), o que permite uma interação entre eles como se estivessem em um palco. Isso abre espaço para alguns belos monólogos, que servem para que determinados personagens expressem o seu ponto de vista sobre as suas profissões e o mercado financeiro como um todo. Um deles é pertence a Wiil Emerson, ao volante do seu carro topo de linha, quando ele defende o papel dos corretores da bolsa na roda gigante da economia. Mais à frente, Eric Dale ao mesmo Emerson, ambos sentados na calçada, em tom saudosista, que era engenheiro de formação. E, por fim, John Tuld, saboreando um suculento filé mignon, contextualiza historicamente a crise de 2008 e conclui que ela não deixa ser uma turbulência que, como as anteriores, será absorvida pelo mercado e pela passagem do tempo (talvez mais por este do que por aquele).
A opção de filmar o roteiro na forma de thriller e de concentrar a maior parte da trama na véspera do “Dia D” para as bolsas a redor do mundo são todas acertadas, mas dificilmente Margin Call funcionaria sem o seu elenco. O destaque, claro, vai para Kevin Spacey, inegavelmente um grande ator, mas que costuma ser preguiçoso quando o projeto não lhe motiva o suficiente. Aqui ele parece estar de voltar aos cascos, e constrói um personagem mais velho, de aparência cansada, cujo cabelo já começa mostrar algumas manchas brancas, e que alterna momentos de extrema frieza (nos dois discursos que é obrigado a fazer para seus subordinados) e ternura (quando chora a doença da sua cachorra). Jeremy Irons, um ator que nunca foi dos meus preferidos, também rouba a cena na pele do executivo-até-o-último-fio-de-cabelo Tuld. Sua entrada no filme, de helicóptero, às 4:00 da manhã, é triunfal. E a cena em que ele pede que o jovem Sullivan explique os detalhes da crise como se estivesse falando uma criança é brilhante. Completam o time Simon Baker, muito bem como o jovem executivo narcisista, Paul Bettany, sempre subestimado, Stanley Tucci, que acerta no estilo low-key de atuação, e o jovem Zachary Quinto, que combina bem os sentimentos de deslumbramento e medo que tem pela própria profissão.
“Seja o primeiro. Seja o mais inteligente. Ou trapaceie”, diz John Tuld aos seus funcionários, no auge da crise. Infeliz de uma geração que pode ser resumida por esses três avisos. Por isso mesmo, Margin Call é um filme oportuno, que deve ser visto e compreendido como um recado para uma sociedade que se julga sem limites, acima do bem e do mal, e que vê no dinheiro um fim em si mesmo. Ainda dá tempo de mudar.
7,0
É verdade. Se não me engano a direção é do Curtis Hanson, mas como é uma produçao para a TV, achei por bem desconsideá-lo.
Ah, então beleza Régis.
E foi o Hanson mesmo o diretor do Grande Demais Para Quebrar, um bom filme, por sinal.
Assim como já deixei de ver um filme só pela crítica... Verei esse depois desse brilhante texto escrito por você Regis Trigo.
Gostei bastante. E Kevin Spacey tá a cara do Ary Graça, presidente da CBV.
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