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Críticas

Cineplayers

O cinema muito perto da perfeição.

10,0

A seqüência inicial de A Marca da Maldade, filmada em um meticuloso plano-seqüência de duração aproximada a três minutos, é o convite perfeito para adentrarmos em uma das mais complexas e intrincadas tramas da história do film noir: uma bomba, após ser acionada, é colocada no porta-malas de um veículo estacionado, onde, logo após, entrarão um importante político e sua acompanhante. O veículo, que partirá do lado mexicano de uma cidade fronteiriça até a parte americana, é seguido pela câmera de Orson Welles através de um dos trabalhos de um genial movimento de grua, até o momento em que a bomba explode, logo após atravessarem a fronteira. Após esta pequena e generosa amostra de puro cinema, o espectador já se encontra em estado de total perplexidade, pronto para desfrutar de um dos filmes mais fabulosos do cinema hollywoodiano de todos os tempos.

É claro que, indiscutivelmente, no que concerne à relevância e herança histórica, o grande trabalho da carreira de Welles é Cidadão Kane. Neste filme, o autor apresenta algumas das mais importantes revoluções cinematográficas já realizadas e, em pleno ano de 1941, mudava completamente o jeito de se fazer cinema. Entretanto, jamais seria capaz de negar minha maior admiração a A Marca da Maldade, cujo lançamento se deu exatos 17 anos após Kane. A comparação entre as duas obras, aparentemente, é ingrata e incoerente, já que ambas utilizam-se de estilos completamente diferentes para o desenvolvimento narrativo. Porém, se analisarmos com maior profundidade seus temas e personagens, notamos que, apesar de suas colossais diferenças, ambas tratam de temas muito semelhantes, como ambição, ganância, dualidade moral, corrupção, arrogância, sentimentos de culpa e de perda, valores éticos e, o melhor: juntando tudo isto, traçam um belíssimo estudo sobre a personalidade humana. 

A história de A Marca da Maldade sucede o acontecimento descrito no primeiro parágrafo. Devido ao fato de a bomba ter percorrido os dois países (fora armada no México e explodira nos Estados Unidos), policiais de ambas as nações juntam-se para a investigação do caso. O detetive americano Quinlan, interpretado magistralmente pelo próprio Welles, e o oficial da Narcóticos mexicana Vargas, vivido farsescamente por Charlton Heston (convenhamos, bigodinho estereotipado aquele, não?), entram em conflito quando começam a discordar abruptamente em seus métodos investigativos. Ao mesmo tempo, a personagem de Janet Leigh, mulher de Vargas, passa por maus bocados nas mãos de uma quadrilha de traficantes que, por conseqüência da prisão de seu líder, decide se vingar de seu marido a qualquer custo.

A princípio, A Marca da Maldade segue basicamente as mais genuínas características do cinema noir: cenas predominantemente noturnas; fotografia escura, com forte definição de claro/escuro; história desenvolvida a partir de um crime; numerosas investigações; personagens imorais e corruptos; e ambientes sujos e degradados fazem parte de toda a composição estética da obra. Entretanto, dois importantes elementos do gênero foram deixados de fora: a femme fatalle (em português, fêmea fatal, mulher que acaba seduzindo e complicando a vida da personagem principal) e, obviamente, o próprio protagonista. A carência destes dois elementos poderia levar um film noir ao fracasso total, ao passo que ambos são praticamente imprescindíveis às obras do gênero – na verdade, compõem fundamentalmente a narrativa de quase todas elas. Mas, neste filme, esta ausência acaba sendo a chave mestra para a revelação de um mistério muitas vezes despercebido pelo público: A Marca da Maldade não é meramente um film noir. Aliás, vai muito, mas muito além disso. 

Tanto quanto Cidadão Kane, esta obra-prima de Orson Welles é, na verdade, um maravilhoso estudo de personagens, ou melhor, um genuíno estudo sobre o ser humano. Aqui, o alvo central é Hank Quinlan, protagonizado, a exemplo de Charles F. Kane, pelo próprio Welles. Quinlan é um detetive gordo e ex-alcoólatra, que carrega nos ombros o peso de nunca ter conseguido capturar o assassino de sua esposa, estrangulada já há muitos anos. Este fato é um divisor de águas, não apenas em sua carreira policial, mas também em sua personalidade. A partir daí, Quinlan jamais deixara qualquer outro caso ser encerrado sem que houvesse alguma punição, mesmo que, para isso, fosse necessário corromper sua moralidade e sua decência policial. Forjava provas e falsificava testemunhos, sem qualquer preocupação a respeito dos prejuízos que viriam a ser criados às partes envolvidas. Acabou construindo, para si, uma nova e desprezível personalidade.

Já Vargas, oficial mexicano interpretado por Charlton Heston, aparentemente, é justamente o oposto de Quinlan (maniqueísmo necessário para a construção de um duelo de personalidades): sua honestidade e seu inconformismo para com as injustiças que percebe no decorrer da investigação levam-no a uma disputa contra a podridão obsoleta das atitudes de seu colega de ofício. [Atenção, o restante do paráfrafo contém revelações sobre a história]. Após notar que Quinlan, motivado em encerrar o caso o quanto antes (e, de preferência, com um suspeito apreendido), forjara uma prova incriminadora, que praticamente definiria o veredicto da história, Vargas inicia uma pequena investigação sobre o passado do colega e descobre, com a ajuda do próprio parceiro de Quinlan, que toda sua reputação era, na verdade, uma farsa tão grande quanto às mirabolantes falsificações evidenciais de seus casos.

O paradoxo entre as duas personalidades é o centro de A Marca da Maldade. Embora acreditemos, inicialmente, que acompanhamos uma obra alinhada ordinariamente à estrutura habitual de um filme noir, somos surpreendidos com uma narrativa complexa e cheia de pequenas subtramas (ainda há vários outros caminhos narrativos importantíssimos, envolvendo, principalmente, a família Grandi - a supracitada gangue, traficante de drogas – e a mulher de Vargas), que tornam um filme que já seria excepcional em uma verdadeira obra-prima. Ademais, alguns outros grandiosos e profundos detalhes, ainda ligados à contextualização das personagens, em especial a Hank Quinlan, conferem a esta produção de Welles uma complexidade extraordinária, sob ponto de vista até mesmo filosófico, em relação à própria personalidade humana. 

Nos escritos de filósofos como Friederich Nietzsche, fruto do radicalismo intelectual alemão do século XIX, é comumente encontrada uma relação entre a humanidade e os princípios de bondade ou maldade. Segundo Nietzsche, ninguém pode ser classificado superficialmente dentro de um destes princípios, já que, devido à complexidade do ser humano, bem como suas escolhas e as características da sociedade em que vive, todos agem devido à situação em que se encontram, tanto física quanto psicologicamente (ou seja, as pessoas possuem atitudes boas ou más, dependendo não apenas de sua personalidade – algo que é reforçado ainda mais quando o pensador afirma, em sua obra-prima Além do Bem e do Mal, que esse passeio entre os extremos do maniqueísmo nada mais é do que uma forma de sobrevivermos diante da hostilidade do mundo).

Estruturando a obra em torno de pensamentos semelhantes aos de Nietzsche, Welles transforma A Marca da Maldade em um verdadeiro documento histórico sobre o tema, construindo um painel meticuloso de personagens e situações imorais e, de certa forma, até mesmo amorais, sem jamais filmar qualquer persona sob um ponto de vista pré-conceituoso – e, mesmo assim, a exemplo do filósofo alemão, Welles não se priva de mostrar que pode sim ser feito um julgamento dessas atitudes. Dentro do universo fílmico de Welles (e a exemplo do que ocorre no mundo real) não existem vilões, nem muito menos heróis. Certo e errado são relativados pela dualidade do ser. A complexidade humana é pintada na tela com talento, com uma grande diferença de abordagem em relação às habituais obras cinematográficas de semelhante tema. A dubiedade do paradoxo “certo e errado” jamais esteve tão acentuada.

Porém, tão importante quanto os personagens e a complexidade filosófica de sua composição é o elenco que os personifica. Orson Welles, em seus mais de 120 quilos de massa corpórea, encarna Quinlan de maneira maravilhosa. O jeito truculento e arrogante, a voz grave e amedrontadora e, para completar, o incrível detalhe da perna manca (que serve também para a criação de uma curiosa brincadeira acerca dos instintos humanos – que resulta em um final lírico e melancólico), criam uma imagem arrepiante, transformando-se quase em uma identidade do filme. Já Heston, reforço, não combina de maneira muito interessante com o personagem mexicano, mas seu habitual talento impede qualquer crítica a respeito da atuação. Enquanto isso, a ótima Janet Leigh enfrenta, neste filme, a primeira experiência traumatizante com motéis de estrada (a idéia de sua personagem de Psicose, inclusive, veio deste filme, bem como a caracterização de Anthony Perkins, inspirada no personagem), e apresenta uma atuação extremamente parecida com a sua mais notável participação no cinema, na fabulosa obra de Alfred Hitchcock. 

Não bastando toda a complexidade moral encontrada em A Marca da Maldade, ainda existem outros e relevantes valores que transformam o filme em uma de minhas obras preferidas de todo o cinema. Se em Cidadão Kane, Welles já demonstrava total controle em sua direção, principalmente em virtude das incríveis experimentações e revoluções técnicas, aqui o diretor nos brinda com um dos trabalhos visuais mais fantásticos já concebidos. Cada plano, cada enquadramento pensado por Welles é hipnoticamente delirante, compondo um trabalho visual apurado, inventivo e que brinca com as principais características do gênero policial. As experimentações de angulações, cortes e movimentos de câmera feitas em A Marca da Maldade criam um visual extraordinário para a obra, que, inclusive, podem resultar em estranhamento, à primeira vista. O trabalho técnico é repleto de pequenos porém significantes detalhes, algo que exala fascínio a cada centímetro de celulóide utilizado. 

Um dos grandes destaques dentro deste inigualável e subversivo domínio de linguagem cinematográfica apresentado por Welles em A Marca da Maldade é a seqüência final: a perseguição de Vargas a Quinlan e seu parceiro (este, com uma escuta), enquanto aguarda certa confissão do policial. Nesta seqüência, Welles compõe enquadramentos milimetricamente planejados, nos quais coloca a câmera em posições ousadas e extremamente inconvencionais, com constantes inclinações diagonais, que, visualmente, proporcionariam um momento de singular beleza. Para tanto, é auxiliado pela espetacular fotografia de Russel Metty, que contorna perfeitamente os traços cenográficos da decadente e indispensável locação, atribuindo aos ambientes uma forma que condiz com o estado emocional das personagens durante o clímax da obra – que, por sinal, é poético como poucos encerramentos fílmicos conseguiram ser até hoje. 

Não raramente, A Marca da Maldade é considerado o último grande filme do noir. Porém, ouso ir além: este não só é o último, mas, também, junto da obra-prima maior de Billy Wilder, Crepúsculo dos Deuses, é um dos grandes momentos deste inesquecível período do cinema hollywoodiano. Vez por outra, aparecem “malucos” (especialistas ou não) que ousam ir ainda mais além: para estes, A Marca da Maldade é melhor filme do que aquela que é considerada não apenas a grande obra da filmografia de Orson Welles, mas também o melhor filme de todo o cinema. Cidadão Kane pode até ser o filme mais importante feito por Welles, mas não poderia mentir para mim mesmo: minha preferência por A Marca da Maldade extrapola toda e qualquer áurea de inquestionabilidade que o filme possa ter criado nesses anos todos. Sim, faço parte deste pequeno grupo de “malucos”. E o mais importante: faço com orgulho.

Comentários (4)

Bruno Kühl | sexta-feira, 14 de Outubro de 2011 - 19:23

Crítica com coração. Uma das melhores do Dalpy, junto com a de Veludo Azul 😁

Francisco Bandeira | terça-feira, 05 de Novembro de 2013 - 12:07

Simplesmente fabulosa a crítica do Daniel. Realmente impressionante o trabalho do Welles na direção. Filme maravilhoso.

Alexandre Guimarães | terça-feira, 05 de Novembro de 2013 - 14:14

\"Simplesmente fabulosa a crítica do
Daniel.\" [2] Talvez a melhor do site

ALINE TAINA | quinta-feira, 21 de Maio de 2015 - 19:01

Lindo texto!!!

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