Violência de cara. Zumbis provenientes de uma monstruosidade marinha. A fita não se furta do seu objeto e parte a ele frontalmente, dando uma medida do que vai rolar adiante logo em sua origem com bons e honestos sustos decididos.
Artefato sobrenatural envolvido. Rituais escrotos com carne. Quando começa o ataque zumbi, é o apocalipse sem fim. Destroçamento caprichado e estamos tensionados o bastante mediante o que já nos era apresentado sebosamente. Cabaré bagaceiro e altamente colorido com cantora de bolero pra aplicar o charme que o material merece e que o momento cabarélístico pede, e na base da bala, e na boca do espetáculo musical começar vem a putaria (uma delas). Zumbis, cabaré, bar, cachaça, peixe frito empanado, nudez, desmembramentos e demônios. Não tem como dar errado uma mistura dessas. Tudo é ameaça e tudo é possível de ser monstruosidade. Abrasileiramento dos esquemas e filmes de zumbi. O filme meio que trabalha em cima de todos estes temas e idiossincrasias, e a sua maneira os leva a cabo na narrativa, sem deixar de ter um encaixe decente e canalha de sua proposição. Não se perde em seus excessos, se usa dos mesmos para se locupletar como abusivo abertamente, e nisso causa uma diversão desenfreada não sem deixar de discutir uma crítica social e econômica própria.
A porrada intencionada pelo diretor Rodrigo Aragão é franca e tão espalhada quanto a metralhadora giratória da Madame Úrsula. Localidadezinha escanteada por todas as autoridades e o que resiste é a sobrevivência de um pescado escasso, bares esvaziados e um prostíbulo. Aí uma autoridade política aparece pra recolher uma grana não sem antes mostrar toda sua face interna de esculhambação que sua falsa moralidade insiste em escamotear. Parece algo típico dos defensores da moral da família tradicional brasileira. A fita zumbifica muitos e mata outros tantos e serve pra dilacerar os poderosos e causar um caos generalizado, que mostra que este caos é uma realidade para várias figuras servindo como resposta social raivosa, que insere, segundo o próprio Aragão, uma crítica do uso em desenfreio do petróleo em áreas do Espírito Santo (Guarapari é sua cidade de nascença, e o grosso de seu cinema pode ser visto nas localidades do Perocão – vila de pescadores das áreas) e o problema ambiental que isto acarreta. Os Zumbis funcionando como resposta poluída ao descalabro do combustível fóssil, e seguindo como consequência consomem o que aparece pela frente, e fora o prazer em ver o deputado vagabundo sendo destroçado, quem realmente se lasca com tudo é a própria população menos abastada, que nem na própria busca por sobrevivência não consegue ter alguma paz que seja, já que elementos externos passam o trator por cima delas. A baleia zumbi encalhada, suja e condenada ao lodo negro, assim como um navio partido ao meio com um vazamento escuro que perambula por parte da baía corroboram mais dianteiramente ao comentário que Aragão vomita.
Uma movimentada câmera a corroborar numa excelente criação de clima horrorífico. Uso abusado de planos holandeses distorcidos – muito uso em algo que encaixa no excesso que é o próprio filme, apesar de que o usufruto dessa escolha poderia funcionar como liturgia de contemplação da desordem, e poder-se-ia ter sido ajustada para momentos de progresso de desordem, mas da maneira que ficou é tida como uma escolha estética do diretor que me parece impactar o todo como um alvoroço insano de começo, onde a narrativa vai num crescente de desgraça, que se justifica em sua abordagem (o todo é a disgrama) –, assim como a câmera sempre parece estar nervosa alugando a mente do expectador para uma tensão continuada. Os planos em contra-plongée hierarquizam bem o poder e desespero que o material conflita, com personagens proferindo força e desespero, e a planificação consegue expor bem isso. Combina com as distorções e brutalidades. O preenchimento dos planos nas cores e direção de arte em seus cenários, quadros e apetrechos, faz com que o clima soturno se mantenha claustrofobicamente sem subterfúgios, além de ser uma sapiência da produção ao acertar em sua atmosfera mesmo com orçamento curto disponível, já que não há espaços perdidos nas imagens. O preenchimento é acertado demais e nos faz esquecer quaisquer problemas orçamentários que se apresentem, já que este acerto de utilização mantém a mente do espectador em polvorosa de olho aquele insano e poderoso microcosmo desgraceiro criado.
E a metralhadora giratória num puteiro? Que coisa sensacional. Tensão, humor e seboseira em níveis equilibrados no exagero, por mais que isso possa parecer paradoxal (queimem as pestanas). Crueldade drástica nesses planos aproximados. A claustrofobia daquele universo é do próprio como um todo e não somente de algum espaço específico. A prisão da qual estes planos nos apertam vorazmente, ao mesmo tempo que possuem o frescor doentio e sanguinário de nos proporcionar uma diversão abusiva. Uma dialética corrosiva e deliciosa. Aqui que mora a sagacidade da direção de Aragão. Inclusive é uma puta vantagem de se ver no cinema um material como esse, com toda a abstração do universo exterior e a absorção imagética e sonora que uma sala de cinema escura proporciona. Sem fugas.
Maquiagem evoca o clima brutal do material desde o seu nascedouro com a face transtornada e suada em desespero dos personagens ao engrandecimento da tensão que vai corroborar em transmutações grotescas adiante. A isto servem bem demais as escolhas pelos planos fechados citados anteriormente. Personagens grosseiros em situações asquerosas – com interpretes em atuações exageradas em diversos níveis com algumas no talo do overpower, mas que em momento algum se furtam a fugir da proposta do material. Pisam no acelerador. Aqui não há espaço para sutilezas diversas. Até para suas referências. Propõe sua selvageria visual com cenas específicas que remetem a alguns clássicos como Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985) de George Romero – contemplado numa das várias cenas de dilaceramento coletivo que lembra a produção oitentista –, ou então até um aceno a Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978) do Philip Kaufman – que replica uma imagem icônica do grito do mesmo. As escolhas de planificação fechada (dos pontos principais da fita) me remete ao cinema do José Mojica Marins, o nosso Zé do Caixão, do qual Aragão é grande fã, além de que a gênese não só desta obra, mas do trabalho de Aragão como um todo, é o agarrar aos problemas que nos afrontam. Nacionais. Brutais. Escrotos. De desgraça e esculhambação temos inspiração demais pra produzir. E disso Mar Negro entende e alopra absurdamente.
Material partícipe da 1ª Mostra de Cinema Papo Meia-Noite
Fortaleza-CE
Crítica integrante - a posteriori - do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween
Tem alguma dica de onde ver o filme?
https://www.youtube.com/watch?v=sBR3t5x1cs4