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Críticas

Cineplayers

O “filme-vírus” travestido de comédia de costumes.

8,0

Em um curto período de tempo, as três obras mais recentes de Cronenberg criam certa semelhança – os filmes Cosmópolis (idem, 2012) e Mapas para as Estrelas (Maps to The Stars, 2014) e sua estreia no mundo da literatura, o romance “Consumidos”. Nas três obras, protagonistas podres de ricos chegam às raias da crueldade e indiferença em seu cotidiano, com suas personalidades limítrofes progressivamente perigosas para os indivíduos que rodeiam as figuras centrais da história.

Mais espalhado dramatúrgica e temporalmente que seu predecessor Cosmopolis, a semelhante frieza e distância ao abordar o star-system de Hollywood de Mapas Para as Estrelas em um primeiro momento podem até lembrar o universo de Brett Easton Ellis, autor dos romances que deram origem aos filmes Abaixo de Zero (Less Than Zero, 1987) e Psicopata Americano (American Psycho, 2000) e assinou o roteiro dirigido por Paul Schrader The Canyons (idem, 2013). Os protagonistas da classe alta estão entre a inércia e a psicose, turbinado por drogas ilegais e farmacêuticas, reféns do consumismo, das maratonas de terapia, exercício e sexo, perturbados por inconvenientes sociais, relações familiares e afetivas superficiais.

Há, claro, uma diferença de abordagem entre Ellis e Cronenberg. Se Ellis dissipa a barreira entre o estranho e o cotidiano e denúncia, em certo nível, o mal-estar contemporâneo em histórias que são relatos curtos, breves e impactantes que logo voltam ao seu ponto de retorno, onde propósito e moralidades são conceitos fora de moda, Cronenberg – como não podia deixar de ser – tem suas raízes fincadas no horror. O horror físico, de confrontação, o vírus de início sintomático que avança inexorável até consumir protagonistas atormentados, inocentes ou arrogantes demais para aprender com o que lidam e reagir de maneira apropriada.

Claro, Cronenberg o destila humor negro satírico elencado que se escolhe muitas vezes para tratar deste assunto, mas sua obsessão temática parece continuar indefectível. Ainda nos serão apresentados personagens com personalidades e ocupações singulares, com segredos e passados terríveis, ambições autodestrutivas, presos em moradas físicas limitadas e castradoras para seus espíritos atormentados. E nisso tudo, é claro, os pactos algo faustianos que assinam, tentados por seus demônios interiores, ao experimentar potencialidades ambíguas que acabam por levar a sua ruína.

No meio da jornada, é claro, eles serão assombrados por seus vislumbres, seja por meio de visões oníricas ou confrontações diretas. O que se costuma chamar de terror “venéreo” de Cronenberg é essa percepção profundamente humana do indivíduo como falho e assombrado, e da sociedade como meio perfeito de “contágio” de medos, paranoias e inseguranças. Que muito falam à comédia, é verdade – esta sempre apegados à caricaturas – ou avatares, ou personificações – de proporções grotescas, que nos tirem do lugar, que nos fazem traçar paralelos. Ponto de vista esse, é claro, partilhado pelo terror. Daí o caminho parecer não apenas coerente mas também ter uma fluidez garantida. Sim, seus personagens são cômicos por serem tão repugnantes – e com a mesma facilidade, são horríveis.

Essa transição, se não mais acompanhada por jornadas de corrupção ou revolução como frequentemente acontecia em suas ficções científicas oitentistas, aqui se opta pelo descortinamento, pelo estranhamento calculado, pelo automatismo quase artificial entre a letargia e a violência ou histeria. Paradas, estáticas, em campo e contracampo ou demorando-se nos rostos prestes a explodir, as câmeras filmam realidade e perturbação da mesma maneira, e tampouco a montagem acelera ou fica lenta para ilustrar a consciência alterada de seus personagens. O que acontece em Mapas para as Estrelas acontece justamente porque é tudo esteticamente uniforme.

Porque esse tédio foi conseguido através de um pacto com a monstruosidade – histórias de relacionamentos abusivos e reações desesperadas são uma temática que une seus personagens além da grande soma de dinheiro que possuem. A elite de Mapas para as Estrelas é inerte, passiva, vivendo um desespero quieto com aparência de comercial – e essa passividade gera violência.

Essa violência, assim como a realidade, assim como a alucinação, mantém o mesmo ritmo – planos abertos, alturas, perspectivas e lentes que deformam seus personagens desde o início, evidenciando com a grandeza de quadro, com a profundidade de campo, da disposição que a misé-en-scene organizada esse caráter de espelho distorcido, exagerado, fragmentário, que conta sem pressa de narrar, expõe sem a pressa de amarrar e inserir voltas – antes que o grande segredo da trama seja revelado para caminhar ao seu desfecho, como não poderia deixar de ser, aberto e distante, grandes crimes já foram perpetrados – tanto no caso da atriz de meia-idade que luta para conseguir um papel quanto do ator prodígio que luta para não ser ofuscado, o pano de fundo de abuso e o presente físico de compulsão que invariavelmente descamba para a violência.

Note-se também aí a figura que Cronenberg sempre gosta de inserir, na pele de Mia Wasikowska, uma garota com um passado sombrio ligado a acidentes domésticos, exílio de casa e internações psiquiátricas, o papel do “anjo da morte”, que cobra pelos erros do passado, pune os erros cometidos ainda hoje e desestabiliza o frágil mundo criado pelos egos inflados de pilares de prazer da sociedade moderna. Compreensão de arquétipos: assim como a busca por vida, gozo e liberdade há a morte castradora, repressora e puritana, há frente à busca pela vida em sua forma distorcida a morte, em sua forma moral, como o limite último. O “vírus” que infecta o organismo cheio de vícios e traz para o corpo, para a pele, todas as suas falhas, imperfeições e feiura condenável. O campo de batalha que Cronenberg tanto gosta de ver, entre corruptos hostis e irrefreáveis e os sensíveis desnorteados e problemáticos.

Aí, talvez, que more o lado verdadeiramente perturbador de Mapas para as Estrelas: não é assustador porque muda ou evoluiu de tom, no equilíbrio entre causar o riso e a agonia. Perturba porque seu tom - do riso sarcástico ao horror absoluto passando pela perturbação gradativa e desembocando no apocalipse pouco conciliável entre os arquétipos postos em rota de colisão - é invariável. Satírico, grotesco, absurdo, uma jornada de horror filmada como um comercial de margarina – Cronenberg e o filme-vírus, “a doença da doença”.

Comentários (5)

Declieux Crispim | terça-feira, 10 de Março de 2015 - 17:21

Baita crítica. Os textos do Brum são sensacionais.

Alexandre Marcello de Figueiredo | sexta-feira, 19 de Junho de 2015 - 19:18

A sociedade que descamba para a neurose absoluta. O espaço é para falar sobre o que nós achamos do filme e não para falar sobre a crítica do crítico.

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