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Críticas

Cineplayers

A ruptura que unifica

9,0

Um processo muito especial e quase mágico ocorre no fim do primeiro ato de Mal dos Trópicos (Sud Pralad, 2004), quando Tong se despede do soldado Keng e o vê aos poucos sumindo pela estrada escura. A câmera permanece estática, a atmosfera de alguma maneira de repente pesa mais, e o momento aparentemente corriqueiro se prolonga tanto que desconfiamos que nessa simples despedida pode existir algo de mais significativo para a trama. Quando Keng finalmente é engolido pela estrada de terra e pela escuridão da noite, é como se ele estivesse se fundindo à paisagem e passando a ser parte da imagem morta. Ele nunca mais é visto.

A partir do momento em que o diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul “engole” seu protagonista na escuridão de seu enquadramento, toda a noção de linearidade e consistência do filme se altera drasticamente. O que havia começado com o romance entre um soldado e um camponês se verte de repente na história de Keng lutando para sobreviver em uma floresta aparentemente assombrada por uma terrível besta selvagem, uma lenda local que ganha vida e o cerca em um jogo de caça e caçador. Podendo se mutacionar em diversas formas animais, a criatura também se mostra capaz de aparecer na forma de Tong.

Em Mal dos Trópicos, Weerasethakul brinca com todos os ingredientes de sua história, os recoloca no caldeirão e constrói uma nova realidade com a mesma matéria-prima usada no início de tudo. O fator comum que costura essas duas tramas em um mesmo universo diegético existe apenas na imagem e na noção de homogeneidade que o diretor constrói por meio dela. Como é próprio do cinema dele, as imagens possuem uma certa independência da narrativa, uma soberania sobre ela, e uma qualidade metafísica capaz de englobar em si conceitos e diversidades lógicas que coexistem simultaneamente em um mesmo plano. Como uma espécie de realismo fantástico, o sobrenatural e o natural se conversam sem existir a questão da oposição entre eles, sem o estranhamento que um normalmente causaria sobre o outro. Tong e Keng, e o amor tão delicado que nasce entre os dois, são apenas parte de algo maior no qual os personagens não estão presos apenas aos corpos que possuem, podendo também existir em outras formas e em diferentes interações.

Obviamente a reação inicial de qualquer um diante dessa ruptura tão radical é se perguntar o mais urgente, diante do carinho que o diretor foi capaz de despertar em nós pelo casal: o homem/criatura correndo na selva é Tong? Ainda existe um soldado nessa segunda metade, mas será ele o mesmo Keng do início? Será que ele reconhece Tong ao flagrá-lo na floresta? Ele estaria ali procurando pelo seu amor perdido ou apenas fugindo/caçando uma assombração? Nada disso parece importar mais, mas sabemos que em algum lugar nesse novo universo ainda prevalece o fator de atração entre ambos, seja ela uma atração romântica ou quem sabe apenas uma questão de instinto selvagem de um predador atrás de sua presa.

O mais atrativo nesse conceito de cinema é o valor visual tão perdido nos filmes modernos, em que a imagem soa redundante e não passa de refém do texto, dos atores, das ações. O fluxo de imagens de Weerasethakul é capaz de assimilar o visto e o não visto, o real e o invisível, o concreto e o abstrato, sem nenhum outro recurso de apoio. Apenas pelo jogo de espelhos e rimas visuais nas duas partes em que ele separa Mal dos Trópicos e já somos capazes de ver refletidos os sentimentos de amor e atração, carinho e dominação, posse e comprometimento, assim como as noções de real e imaginário e o versus entre o homem racional e o animal que o habita. A imagem é sempre aplicada como filtro ou porto seguro capaz de abrigar e nivelar por igual todos os elementos de cena em um espaço homogênico, orgânico e de fluxo em constante sintonia – como acontece simbolicamente no momento supracitado em que Keng é absorvido pela escuridão e assimilado como parte estática da imagem.

O que nos guia nesse meio todo é a paixão latente entre Tong e Keng, que nunca deixa de existir mesmo quando os dois estão realocados em novas configurações de identidade, espaço e interação. Se no início Keng se apaixona por Tong e aos poucos vai tentando conquistá-lo (levando-o ao cinema, acariciando suas mãos etc.), aqui nesse contexto ele segue seu instinto mais natural e parece persegui-lo da mesma maneira como um animal persegue o outro no processo de acasalamento. Quando por fim consegue alcança-lo, os dois rolam pela clareira, lutam, sangram, mas ao mesmo tempo há todo um apelo homoerótico nesse embate, com Tong nu, arredio, enfraquecido, e Keng agressivo, apaixonado e dominador. O casal apaixonado deu lugar ao animal em um selvagem processo de dominação corporal, territorial, com base apenas nos sentidos, no cheiro, no tato. Não há nada que soe mais complementar e harmônico com a primeira metade, e é nessa conclusão estarrecedora que percebemos a lógica visual ao mesmo tempo impossível e muito natural que somente o cinema de Weerasethakul é capaz de proporcionar hoje em dia.

Comentários (1)

Leo | quinta-feira, 27 de Junho de 2019 - 17:45

Critica foda. É engraçado como os filmes dele cresceram dentro de mim. Provavelmente por causa dessa força imagética que ele tem, dessa poesia única que conseguiu criar...

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