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Macbeth: Ambição e Guerra

(Macbeth, 2015)
6,6
Média
109 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Mãos livres de sangue.

4,0
Embora seja um dos autores mais conhecidos e aclamados da história, William Shakespeare ainda é uma aposta de risco quando tem uma de suas obras adaptadas para o cinema, por mais que essas infinitas transposições já o tenham colocado numa zona de fácil reconhecimento e assimilação, mesmo entre um público mais leigo. Foram tantas versões, atualizações, releituras, subversões ou até reproduções fiéis para a telona que trazer algo de novo em cima de algum texto do famoso bardo parece uma tarefa fadada ao fracasso ou à mesmice. Claro que temos boas exceções, como as geniais releituras de Akira Kurosawa, ou as adaptações barrocas de Orson Welles, fora o bom filme de Roman Polanski, mas no geral, Shakespeare ainda é um risco pelo simples fato de que sua obra é grandiosa demais e, por mais que esteja hoje famigerada pela cultura popular, continua digna apenas de ser considerada por grandes diretores (sendo que mesmo alguns grandes, como Jean-Luc Godard em Rei Lear [idem, 1987], não deram conta).

É difícil então entender bem o que Justin Kurzel tentou fazer em seu Macbeth: Ambição e Guerra (Macbeth, 2015). Naturalmente, ninguém estava esperando um novo Trono Manchado de Sangue (Kumonosu jô, 1957) ou Macbeth - Reinado de Sangue (Macbeth, 1948), mas só a escalação de Michael Fassbender e Marion Cotillard, dois dos melhores atores atuais, para o os papeis principais já rendeu certo status e expectativa. O orçamento de peso garantiria uma produção caprichada e o texto-base dispensa comentários. O estranho foi ver que, mesmo com tudo a seu favor, Kurzel não foi capaz dar conta de nada além da direção de arte.

Dá para identificar claramente a nobre intenção do diretor em eliminar qualquer raiz teatral, e por isso há um apuro estético tão grande, uma direção tão pretensiosamente barroca, um uso tão calculado de cores, uma preocupação tão carinhosa com formas e movimentos,uma fotografia tão deslumbrante, e um comando tão minimalista com o elenco, evocando a adaptação horrenda de Baz Luhrmann para Romeu e Julieta.Também é clara a pretensão de somar ao texto de Shakespeare através uma dramaturgia contida e, digamos, fria, contrariando as explosões dramáticas e a tragédia sanguinária de outras adaptações e tentando dessa maneira se aprofundar nos personagens com uma visão mais sóbria, ou quem sabe mais “madura”.

No Macbeth de Kurzel, embora prevaleçam os temas recorrentes da obra, como ambição e regicídio, as abordagens são tão contidas e sutis que, cedo ou tarde, o que começa a de fato pesar é toda a parafernália técnica, desvalorizando o poder do texto de Shakespeare através de declarações anêmicas, muitos tempos mortos para dar uma sensação de grandiosidade e reflexão, e atuações frias por parte do casal principal, com monólogos que perdem o vigor para declamações insossas e embates mornos. A Lady Macbeth de Marion Cotillard mal abre a boca para falar e sequer suja suas mãos de sangue, como acontece na cena mais conhecida da peça.

Curiosamente, apesar de toda a ambição de fazer um filme mais “lento”, nota-se certa pressa bem nas passagens que exigiam mais lapidação. Os dilemas internos de Macbeth, que culminam em sua corrupção e decisão de matar Duncan por influência de sua esposa, são tratados sem cuidado e o que deveria ser uma gradativa jornada ao lado obscuro da alma se torna uma transição abrupta e não convincente, e Fassbender acaba se perdendo no texto em certo ponto, precisando do contraponto de Cotillard para não escorregar de vez. O aspecto psicológico dos personagens, tão complexo no texto de Shakespeare, é bem limitado pelo roteiro errante, o que compromete o valor dos personagens, por mais que o elenco esteja empenhado. O que há de melhor preservado do texto original é a atmosfera que nasce nos momentos de viés sobrenatural, talvez o principal acerto de Kurzel, captando bem a ideia de um universo amoral regido por maldições e divindades, onde não há espaço para preservação de qualquer boa intenção. Esse clima cinzento serve de principal compensação pelas falhas de roteiro, e contribui para que a transformação de Macbeth se torne pelo menos um pouco convincente.

Mas nessa ânsia de trazer uma obra de grande relevância enquanto cinema, Kurzel demonstra que não sabe formar uma identidade visual essencialmente cinematográfica, apenas recorre a afetações estilísticas e dramaturgia minguante para podar qualquer aspecto teatral e nesse meio tempo termina por anular a força motora da obra de Shakespeare, entregando um filme apático. Faltou experiência, verdadeira ousadia e até mesmo um propósito mais claro; mas faltou principalmente um pouco mais de sangue.

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