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Críticas

Cineplayers

Cinema à parte.

8,0

O iraniano Jafar Panahi é um dos cineastas mais interessantes da nova geração, e com poucos filmes no currículo já conseguiu um destaque mundo afora que muitos autores mais experientes ainda não conquistaram. Isso porque a trajetória levada por cada trabalho seu para finalmente chegar aos circuitos de cinema é quase épica. O Irã é um dos países mais severos com relação à liberdade no cinema, e o resultado disso foi a condenação de Jafar a seis anos de prisão domiciliar, impedido de filmar. Seu mais recente trabalho, Isto Não é um Filme (In Film Nist, 2010), foi parar no Festival de Cannes graças a uma operação clandestina, em que um dos colaboradores do projeto, Mojtaba Mirtahmasb, conseguiu transportar em um pen drive o conteúdo sem levantar suspeitas. Agora o filme finalmente está disponível no circuito nacional, ainda que em poucas salas de exibição, trazendo consigo um manifesto de um artista oprimido por uma ditadura cega.

O mais interessante nesse trabalho de Panahi não é apenas o tom experimental que o próprio título denuncia, mas sim a ironia presente em seu conteúdo. Em plena era digital, onde qualquer pessoa portadora de um celular com câmera é capaz de gravar um filme qualquer, Jafar se vê preso em seu apartamento, impedido não por questões técnicas ou financeiras, mas sim por um regime religioso que parece não ter acompanhado a evolução de nosso tempo. Em um mundo onde fazer cinema está ao alcance de qualquer um, acompanhamos um cineasta brilhante preso pelo mais lamentável dos obstáculos. É a partir dessa triste constatação que nasce a essência de Isto Não é um Filme, um dos documentários mais incisivos dos últimos anos.

Trata-se de um trabalho de simples execução, que nos apresenta primeiramente a rotina do diretor, confinado em seu apartamento na cidade de Teerã. Depois de acompanharmos um pouco desse dia a dia, inclusive algumas conversas dele com sua advogada, Jafar finalmente propõe ao público uma atividade diferente. Se até o momento o que presenciamos foi um relato perturbador sobre um artista confinado em um lugar pequeno e cheio de ideais proibidos na cabeça, agora ele nos leva a acompanhar sua ideia de realizar um tipo de processo de “não filmar”. Delimitando espaços com fitas adesivas em seu pequeno ambiente, ele nos narra a história de uma moça iraniana que fica trancafiada em casa pelos pais e é impedida de frequentar a faculdade.

O que é real e o que faz parte da história de Jafar já não importam mais, de modo que não sabemos definir se o que estamos vendo é um filme ficcional ou um simples registro de acontecimentos cotidianos. O que interessa na trajetória desse “não filme” é o teor crítico afiado do diretor, que ao mesmo tempo que ironicamente afirma não estar filmando nada por conta das leis de seu país, obviamente está passando através dessa mídia todas as suas frustrações e desgostos. Nasce desse formato curioso algo que não pode ser definido propriamente como filme, até porque estamos lidando com um material filmado no Irã e que seria estritamente proibido ser divulgado caso estivesse classificado como tal, de modo que a experiência em assistir a esse, digamos, “projeto”, passa a ser algo além do que estamos acostumados a esperar em uma sala de cinema.

As proporções de Isto Não é um Filme são gigantescas quando olhamos tudo por esse prisma. Afinal, se o que está em jogo não é um filme, embora pareça um, então podemos concluir que os limites estabelecidos pelo realizador estão além daqueles que o cinema pode chegar. É como se houvesse uma quebra na barreira que separa o espectador real da ficção por trás de uma tela. Não havendo, portanto, os limites dessa arte, estamos lidando com vida real e ilimitada. A partir dessa conclusão, Jafar nos faz enxergar com um realismo cruel e ao mesmo tempo apaixonante um relato tão próximo a nós que, de fato, não parece um filme. Não sendo um filme, ele não tem com o que se preocupar em relação às leis de seu país; não sendo um filme, o sentimento é de estar dentro daquele apartamento ao lado de Jafar, já que não há a necessidade de uma tela de cinema separando realidade e ficção – os dois lados são parte do mesmo plano.

Essa quebra de barreiras que Jafar constrói em Isto Não é um Filme na verdade indica o desejo do diretor de um dia poder também romper as fronteiras religiosas, políticas e culturais de seu país e ter o direito de se expressar através do cinema. Afinal, mesmo com esse espetacular “não filme” que ele nos proporciona com essa experiência, sua vontade mesmo é fazer filmes tradicionais como qualquer outro cineasta, e poder ser reconhecido e recompensado por esse grande talento que possui. Realidade todos nós já vivemos, e o que Jafar Panahi quer é um pouco de ficção – um pouco de “filme”.

Comentários (6)

Heitor Romero | quinta-feira, 08 de Dezembro de 2011 - 22:25

obrigado Marcelo 😳

Lucas do Carmo | terça-feira, 08 de Janeiro de 2013 - 12:45

"Realidade todos nós já vivemos, e o que Jafar Panahi quer é um pouco de ficção – um pouco de “filme”."

Muito bom, parabéns Heitor.

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