O operático esquizofrênico cageano numa selva enferrujada
Nova empreitada de Nicolas Cage em sua saga dos filmes mais variados na exibição de seus maneirismos do exagero. Numa fita que eles funcionam bem na proposição de ação e tensão. Nosso protagonista é um contrabandista de animais que viaja num navio de carga com um presidiário internacional perigoso que, obviamente, se solta e libera também os animais em cativeiro do Cage, principalmente uma onça branca rara e perigosa. O lance é como a obra trata não somente seu roteiro, mas sim sua narrativa de forma competente e sagaz.
Aqui o jogo é direto. Apresentação de personagens de maneira rápida. Assim como seus objetivos e interesses. Sabemos que vai dar merda com o criminoso e com a onça albina. Ponto. Não há surpresas, mas há tensão. O que torna a obra escrotamente divertida é como ela trabalha estas questões unindo terror, ação e suspense num local fechado. O navio e a mata. De início no Brasil, numa busca a tal bicho branquicento no verde da mata brasileira. Segue noutro verde em seguida. Agora, um esverdeado embolorado, desbotado e imundo do interior da embarcação. A transposição de uma selva original para uma metálica criada pelo humano. Tão brutal quanto. Com seus próprios instintos e preferências. Isso fica ainda mais claro pela questão de vítima e perseguidor que permeia o material inteiro, que tem como vilão Kevin Durand como o presidiário. Um animal que vira predador? O caos. Ele vem com a intenção de quebrar a sistemática humana em seus padrões de sobrevivência básicos. Está ali a jeito de avacalhar. Tal qual uma onça solta num navio de carga. E Cage nessa desordem? É outro bruto incumbido de matar e deixar de ser presa. A fita faz este leva e traz de situações em que o resto de seus personagens servem mais a enriquecer a fileira de vítimas do que qualquer outra coisa. Como animais numa floresta tropical frente a um predador, que quando o encontram, passam a significar pouca coisa além de mero alimento.
Como uma mata é opressiva em seus detalhes e possui um ecossistema tácito e coerente, assim é uma nau moderna de metal, também invocando estes elementos. Cheia de maquinário espalhado num visual sujo e compreensível e igualmente proposto na base da opressão. Tudo num bom aproveitamento do espaço. Estamos num matagal com animais escrotos e perigosos, além dos irracionais. Movimentação de câmera básica e competente mostrando o ambiente – em corredores, grades e jaulas – na interação do principal animal humano Cage nele em afazeres usuais, sejam eles alimentar animais, beber compulsivamente ou se digladiar com o vilão. Tudo parte de um ecossistema obviamente esperado, tal qual ele mesmo já desconfiara de início onde estava se enfiando. A montagem corrobora esse clima mantendo vários tipos de caças, num perambular pelos corredores estreitos e encardidos. Desde Cage procurando o felídeo fera ao policialesco atrás do antagonista vilanesco. E este último sem se esconder, executando de volta quem ele achar. Uma selva de metal sebento. Com vários ataques e fugas. Então temos o vermelho na parte final. Com o predatório se fechando com sangue. A ação do longa funciona bem quando se une ao suspense/horror, sem muitas firulas e sem coreografias altamente trabalhadas. É um material conciso e objetivo. Vide a coerência dos conflitos entre os caçadores Cage e Durant. Um especialista em animais e um especialista em homens. O que cada um tem a instaurar no combate. Cada modus operandi usado.
A besta e a floresta. Mal-encarado e seboso como sempre. Mito. Animal. Monstro. Nicolas Cage. O esquema desse maluco, na maior parte do tempo achincalhado por grande parte da crítica domesticada na Academia, é ser além do "over". Além do excesso. Na verdade, é uma overdose. Alguns chamam de "over the top", outros de "overacting", e o próprio ator afirma que sua técnica é o "operatic". O operático é proveniente da ópera, o que prima pelo abuso do teatral em se fazer sentir, com gritaria e caras e bocas em estúpida exorbitância. Como estamos acostumados a padrões estabelecidos, tais quais as influências do Actors Studio sob a tutela do grande Lee Strasberg sob defluência de outro monstro como Constantin Stanislavski. Com um material mais voltado a uma realidade mais sóbria, inclusa a criação do “método” — que contrapunha o modelo de star system adotado por grandes nomes da Era de Ouro, e ia no caminho contrário do cinema japonês dos anos 1930-50, que abraçava o teatro Kabuki, que primava pelo exagero. Nesse último lance, sim, que o Cage mais se desenvolve.
A persona de Nicolas Cage cola perfeitamente com o tipo de anti-herói clichê bêbado e grosseiro, um clichê maravilhoso, diga-se de passagem. Ora, com um personagem desse, por que não funcionaria uma abordagem esticada no abuso do exagero? Apesar de que aqui em Instinto Predador (Primal, 2019) ele não está tão tresloucado quanto em Motoqueiro Fantasma - Espírito de Vingança (Ghost Rider: The Spirit of Vengeance, 2012) ou Mandy: Sede de Vingança (Mandy, 2018), mas ainda assim afetado pela ambiência e se adaptando, a seu modo, a um novo mato, como uma besta enjaulada agora solta. Esta rima funciona, somos todos animais histéricos quando nossos instintos clamam por fuleiragens e pressões. Esse mecanismo, euforicamente esquizofrênico, passa uma mensagem de desconforto tácito porque o costume do comedimento nos foi domesticado. Envernizado. Priorizado. Por isso que o animal em questão deve continuar nos aloprando. Sem mais domesticações, afinal, a selva é logo ali.
Por que temos tanta apreensão ao diferente não usual? É do humano temer aquilo que não se entende e passar, assim, a negá-lo ou objetivá-lo como inferior somente pela existência. Afirmo isso tanto sobre filmes bagaceiros e/ou de baixo orçamento pelas condições propostas como o próprio Primal, quanto pelo estilo excessivo do protagonista – não só nesse longa, como em grande parte de sua carreira. Não estou aqui fazendo uma apologia de que tudo que venha de baixo, das sobras, seja superior ao mainstream (em boa parte o é, claramente), mas clamo que sejam dadas mais oportunidades a outros cinemas fora do escopo da Academia e da indústria, de certa forma. Vamos assistir às podreiras, vamos experimentar o hálito podre de restos de carne estraçalhada de um felino esbranquiçado assassino e seus pares racionais igualmente perigosos. Bora ver o que esta galera tem a nos contar. Pode ser uma experiência bem melhor do que o choramingo de outros cinemas. Por conta do direcionamento específico e operativo desse ator nesse tipo de cinema que seus trabalhos ficam relegados a esses filmes de baixo orçamento, alguns esquecíveis obviamente, mas outros tantos honestos e interessantes, tal qual o objeto em questão nesse texto. Isso nos propicia uma vantagem. A liberdade e falta de frescuras outras. Talvez falte ainda uma perspectiva histórica que somente o tempo permitirá para se perceber o método que está sendo desenvolvido por Cage – na base de muita loucura, claro – e assim ser respeitado ao menos. Um cinema sem o freio de mão puxado. Escroto e virulento. Zuadento. Gritaria e pura esculhambação. Isso que eu quero.
Nicolas Cage. Um homem. Uma máquina. Uma besta enjaulada com ódio kkkkk. Fiquei curioso por esse Primal, nem sabia que ele tinha lançado.
Besta enjaulada. Esqueci dessa. HahahahH
O homem é imparável. Lança um atrás do outro. Já teve um Sci-fi oitentista que saiu a pouco também.