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Críticas

Cineplayers

A nouvelle vague romena.

7,0

Responda rápido: qual país produziu a melhor cinematografia dos últimos 10 anos? Se você respondeu Romênia, acertou.

A origem desta nova onda romena foi aberta em 1989, após a derrubada do governo comunista e ditatorial de Nicolae Ceausescu, e a abertura política e econômica do país. Os frutos do regime democrático começaram a ser colhidos a partir da primeira década deste século XXI, quando a juventude que testemunhou – passiva ou ativamente – o êxito da Revolução passou a abordar, por meio do cinema, a história recente da Romênia através de um estilo de filmagem e de escolha temática bastante semelhantes entre si. Nomes como Cristi Puiu, Cristian Mungiu, Corneliu Porumboiu, Cristian Nemescu, Catalin Mitulescu e Florin Serban começaram se tornar conhecidos além dos limites do Rio Danúbio e dos Montes Cárpatos, e seus trabalhos, figurinhas carimbadas nos mais importantes festivais de cinema do mundo.

De 2005 para cá, com uma regularidade de praticamente um filme por ano (às vezes dois), é raro não ver uma obra romena premiada em alguma mostra internacional. A prova dos nove está nos reconhecimentos obtidos por títulos como A Morte do Sr. Lazarescu (Moartea domnului Lazarescu, 2005), Como Eu Festejei o Fim do Mundo (Cum Mi-am Petrecut Sfarsitul Lumii, 2006), A Leste de Bucareste (A Fost Sau n-a Fost?, 2006), 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, 2007), California Dreamin’ (idem, 2007), Casamento Silencioso (Nunta muta, 2008), Contos da Era Dourada (Amintiri Din Epoca De Au, 2009), Policia, Adjetivo (Politist, Adjectiv, 2009), Se Quiser Assobiar, Eu Assobio (Eu cand vreau sa fluier, fluier, 2010), Aurora (idem, 2010), e Além das Montanhas (Dupa Dealuri, 2012). Este grupo acaba de receber um novo integrante, o igualmente premiado Instinto Materno (Pozitia Copilului, 2013), do jovem Calin Peter Netzer (38 anos no lançamento do filme), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2013 e representante oficial da Romênia ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2014 (de cuja disputa acabou ficando de fora).

Logo na primeira sequência, Cornelia [estupenda participação de Luminita Gheorghiu, que perdeu o prêmio de melhor atriz em Berlim no braço de ferro para a chilena Paulina Garcia, por Gloria (idem, 2013)] se mostra ressentida com seu filho Barbu (Bogdan Dumitrache). Há alguns dias, ele não atende seus telefonemas, não a visita e muito menos mostra vontade de comparecer à festa de seu aniversário, marcada para aquela noite. Sua irmã Olga (Natasa Raab), que serve de confidente, tenta minimizar os problemas, mas Cornelia não se convence. Para ela, o comportamento arredio do filho já tem, inclusive, uma culpada: a namorada dele e muito possivelmente sua futura esposa, Carmen (Ilinca Goia). A tensa relação entre os dois será colocada à prova quando Cornelia recebe a notícia de que Barbu se envolveu num acidente automobilístico. Ele saiu ileso, mas a criança por ele atingida morreu na hora. A partir deste instante, Cornelia não medirá esforços para, a despeito das evidências contrárias, provar a inocência do filho.

Instinto Materno trabalha em duas camadas distintas. No tema menor, o filme aborda o amor incondicional de uma mãe pelo filho; no maior, o diretor Netzer discute as relações sociais na Romênia dita democrática. Sai-se bem em ambas as investidas.

Enquanto limitado ao ambiente familiar, Instinto Materno combina elementos de o argentino Uma Mulher Sem Cabeça (La Mujer sin Cabeza, 2008) e do coreano Mother – A Busca pela Verdade (Madeo, 2009). Do primeiro, vem o plot básico: os efeitos colaterais provocados por um acidente de carro (com a diferença de que no filme de Lucrecia Martel, o viés era mais psicológico). Do segundo, a mãe dominadora, tsunâmica, que praticamente se anula para viver a vida do filho. No entanto, Netzer logo descarta estas duas premissas e assume sua própria voz.

A partir daí, Instinto Materno acaba se assumindo como um eficiente estudo de personagem. Tal e qual o Capitão Nascimento, Cornelia tem uma missão dada e uma missão a ser cumprida: livrar o filho da cadeia. Se antes ela não via problema em cometer pequenos pecadilhos caseiros, ao fazer da sua empregada doméstica uma espiã das rotinas diárias de Barbu, agora o buraco é mais em baixo. É a liberdade dele que está em jogo. Logo, se os fins justificam os meios, ela não pensa duas vezes antes de acionar seus contatos imediatos do 3º grau, como o médico que conduz o exame de sangue e toxicológico em Barbu. Na delegacia, apresenta-se como advogada (embora seja arquiteta de formação), e força o filho a alterar o teor do seu depoimento. Mais à frente, percebe que pode ganhar pontos importantes com o delegado ao conceder-lhe um pequeno favor junto aos órgãos públicos locais num assunto relacionado à aprovação de uma obra. E se o motorista do carro que foi ultrapassado por Barbu e que, portanto, testemunhou o atropelamento, tem o seu preço, porque não abrir negociação? Implacável e dura na queda naquilo que diz respeito à sua família e em especial ao seu filho, ela nem sequer demonstra preocupação com os sentimentos dos outros interessados no caso. Tanto que na delegacia, quando há o inevitável encontro com os familiares da vítima, sequer lhes dirige a palavra.

O amor incondicional pelo filho que move Cornelia ao longo do filme é retratado de forma fria, pragmática, quase como um sentimento de propriedade. Tirando uma única sequência em que a mãe é vista cuidando dos ferimentos de Barbu pós-acidente (e que beira a um contato incestuoso), não há uma demonstração de afeto ou carinho, mas sim a preocupação pelo fato de ela estar perdendo-o para o mundo. Por sua vez, Barbu é pintado como um sujeito infantilizado (também pudera!), omisso e que deixa sua vida ser inteiramente conduzida pelos outros (sua expressão vazia na delegacia e na mesa de jantar chega a irritar). Sua ausência do cotidiano familiar e a rispidez com que se dirige à mãe sugerem antigos atritos entre ambos (provavelmente provocados pela personalidade invasiva e titânica da mãe) e que ele, talvez um pouco tarde demais, vem tentando assumir um maior controle sobre suas ações. No meio desse tiroteio, a figura paterna surge como um sujeito fraco, condescendente, que contemporiza em vez de repreender. 

Nesta temática menor, Instinto Materno abre uma discussão, sempre pertinente, sobre o excesso de amor dos pais pelos seus filhos. Não se nega que este amor é, de fato, incondicional. Mas quando oferecido além dos limites, os efeitos podem ser devastadores. O equilíbrio na dosagem varia de caso a caso, mas se os pais educarem seus filhos para o mundo e não para si, como autênticas propriedades privadas, já é um bom começo.

Cornelia é exemplo típico de mãe que passou da conta. Mesmo sendo retratada – ainda que de passagem – como uma competente e bem realizada arquiteta, ela parece só ver sentido na sua vida desde que contextualizada com a de Barbu. Cornelia pode até negar, mas inconscientemente ela sabe que o cordão umbilical com seu filho deveria ter sido cortado muitos anos antes. Mas sua personalidade intrusiva é mais forte, e ela teima em mantê-lo sob suas rédeas, impedindo-o de crescer e de assumir como homem. É emblemática a sequência em que ela, no dia seguinte ao acidente, acessa a casa dele para buscar algumas roupas. Não há necessidade de pedir permissão ao filho, afinal ela possui as chaves do apartamento. Dentro do recinto, Cornelia se sente no direito de abrir portas e gavetas de armários, alimentar os peixes, e até mesmo jogar fora alguns objetos que ela julga desnecessários. Pelo que o filme dá a entender, aquele livre acesso não é um fato isolado, motivado pela urgência causada pelo atropelamento, mas sim um hábito integrado ao cotidiano de Cornelia, e que conta com a permissão do filho.  

Não é à toa que Barbu transfere a seus pais a responsabilidade das negociações com os envolvidos no acidente. Trata-se de uma mera repetição daquilo que fez durante toda sua vida: deixar que os outros decidam por ele. A personalidade de Cornelia é tão forte e seu amor pelo filho é tão intenso (e destrutivo), que Barbu não foi ensinado a tomar decisões importantes por conta própria, e quando o fez, provavelmente foi repreendido. Com uma mãe poderosa e onipresente como aquela, também não é difícil entender as origens psicológicas da crise conjugal entre Barbu e Carmen (é sintomático que, como na vida, ele está ausente da sequência que melhor o explica como personagem: a cortante e pra lá de honesta conversa entre Cornelia e Carmen). Com sua timidez, imaturidade e jeito apagado de ser, a impressão que fica é que Barbu não é acolhido pelo amor incondicional de Cornelia, mas sim alvo de uma espécie de bullying materno.

Na sua segunda camada, Instinto Materno parte do acidente automobilístico para discutir as relações de poder da Romênia dos dias de hoje. E, pelo que se vê, a realidade de lá não é muito diferente da brasileira. Além das enormes diferenças sociais e econômicas da população, os romenos também parecem resolver seus conflitos na base do jeitinho, do acordo de cavalheiros, dos pequenos favores, dos contatos, da definição de um preço e da corrupção.

O abismo entre as classe sociais do país fica bem evidente na contraposição da elite, representada por Cornelia, com a fatia mais carente do povo romeno, simbolizada pelos pais da vítima atropelada. O encontro de ambos na delegacia é emblemático: enquanto Cornelia e a irmã chegam ao local vestidas em caros casacos de pele, e amparadas em smartphones (dois cada uma) da última geração, resta à mãe e aos irmãos do menino morto chorarem a perda inesperada do ente querido.

Netzer parece dizer que esta mesma elite está disposta a fazer qualquer sacrifício para jogar seus deslizes para baixo do tapete. Basta dizer o preço. Essa mensagem surge em dois momentos: quando Cornelia retribui o favor da sua empregada doméstica dando-lhe de presente um antigo par de sapatos, e na sua tentativa de pagar as despesas do funeral do menino atropelado. Nos dois exemplos, Cornelia não está nem um pouco interessada em agradar a pessoa presenteada. Para ela, este é apenas o meio, o preço a se pagar, para se alcançar um benefício maior  (informações sobre a rotina do filho e o perdão dos pais da vítima). A corrupção também parece estar incrustada na sociedade romena, desde os agentes públicos (é do delegado que parte o pedido de aprovação da obra junto à Prefeitura) até os cidadãos comuns (o motorista que testemunhou o acidente).

No entanto, mesmo no meio de tantas mazelas, Netzer se revela um otimista de carteirinha. Ao final, quando a porta traseira de um carro é destravada e um tímido aperto de mão surge na sequência, o diretor renova a esperança no futuro de seus personagens e da própria Romênia.

Comentários (2)

Gustavo Hackaq | quinta-feira, 20 de Março de 2014 - 19:35

Gosto muito do cinema romeno pelos poucos filmes que vi (meu preferido é 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias). Instinto Materno é ótimo também, o final arrebata.

Rodrigo Torres | quinta-feira, 20 de Março de 2014 - 20:01

Só pelo primeiro parágrafo, já me interessou. Vou ver esse o quanto antes!

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