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Críticas

Cineplayers

O peso do passado e a impotência frente à realidade são motes para a incursão de Scorsese no suspense.

8,0

Ilha do Medo é um filme absolutamente à parte na filmografia de Martin Scorsese – razão suficiente para desde já suscitar muita polêmica e divergências de gosto. Ele, que frequentemente é apontado como o maior diretor de cinema norte-americano vivo, consagrado sobretudo por suas obras de gângsteres e do universo da máfia, aqui faz um filme de suspense bastante soturno, um thriller psicológico assombroso. Ainda que possua diversos elementos em comum com alguns de seus maiores clássicos, Scorsese arrisca-se em um território relativamente inédito para o seu cinema, ousando flertar de forma mais direta com o estilo de Alfred Hitchcock e o gênero de film noir, nesta adaptação do livro homônimo de Dennis Lehane.

Famoso por suas parcerias duradouras como as que teve com Harvey Keitel, Joe Pesci e principalmente Robert De Niro, Ilha do Medo já é o seu quarto trabalho protagonizado por Leonardo DiCaprio, a quem cujo talento ele atribui o ânimo para continuar fazendo cinema de maneira tão produtiva. No auge da forma como ator dramático, DiCaprio vive o perturbado detetive da polícia federal Teddy Daniels, enviado para a “Shutter Island”, a remota ilha que dá título ao filme, onde funciona um estranhíssimo presídio para sociopatas, um manicômio de segurança máxima que faria o hospital psiquiátrico de Um Estranho no Ninho (1975) parecer um ingênuo jardim de infância. Junto com seu parceiro Chuck (Mark Ruffalo, em boa atuação), vai para o isolado lugar a fim de desvendar o mistério do desaparecimento de uma assassina perigosa, acusada de matar os próprios filhos. Lembranças da vida passada do detetive virão à tona, e este é apenas o ponto de partida de uma trama complexa com desmembramentos que se tornam cada vez mais instigantes e insolucionáveis.

Logo neste início de projeção, há um uso ostensivo da trilha sonora como artifício para criar medo e suspense, algo que irá remeter diretamente ao cinema de Alfred Hitchcock. Os arranjos dissonantes do naipe de metais fazem o clima, e lembram muito o trabalho de Bernard Herrmann (o colaborador usual de Hitckcock). A trama se passa nos anos 50, portanto todo o figurino, indo dos chapéus, os sobretudos e todos os trejeitos da dupla de detetives seguem uma recriação de muitos arquétipos da Era de Ouro de Hollywood: DiCaprio é apresentado como um típico personagem de film noir, lembrando muito o detetive vivido por Glenn Ford de Os Corruptos (1953); Ruffalo fala com dicção desleixada, fiel a de Marlon Brando quando jovem. Além de toda a direção de arte cuidadosa em recriar a atmosfera da época, e a fotografia caprichar no jogo de luz e sombras característico do gênero, Scorsese não se cansa de fazer referências à história do cinema em seus filmes, e aqui não seria diferente. A mais notável é o enquadramento do chuveiro em uma cena de DiCaprio no banho, tal como em Psicose (1960).

Apesar de uma ambientação que lembra constantemente a aura de alguns dos filmes do mais alto cânone cinematográfico, narrativamente, porém, é inegável que Scorsese opta em Ilha do Medo por uma levada que encontra similaridades e um apelo típico do cinema de suspense comercial contemporâneo – até mesmo M. Night Shyamalan. Reviravoltas absurdas, labirintos psicológicos, ritmo acelerado, uma mescla constante de delírio e realidade e, ao fim, claro: uma revelação derradeira, chocante, que dá novo sentido e dinâmica para toda a história, altamente ambígua e discutível. Seria surpreendente se já não fosse algo formulaico em termos de roteiro, mas inegavelmente incendiária e com capacidade de envolver inteiramente o espectador até o último minuto. Ainda que pese um teor mais comercial em Ilha do Medo, engana-se quem pensa que Scorsese cai numa simples gratuidade de gênero.  Pelo contrário: a trama serve de pano de fundo para uma reflexão muito mais profunda e abrangente do que inicialmente pode se supor.

Primeiro, pelo momento em que se desenrola a história: 1954 é o epicentro dos anos inseguros, a absoluta incerteza que representa o pós-Segunda Guerra, onde o mundo ainda se ressentia da maior catástrofe já ocasionada pela própria humanidade. Como levar a vida adiante, sabendo que a carnificina e a culpa ainda estão tão presentes no imaginário coletivo? Como conviver com as imagens de extermínio, o holocausto, as pilhas de corpos mortos em campos de concentração ainda tão frescas na memória? O impacto disso mudou o mundo, e esse é o verdadeiro tema central de Ilha do Medo.

Havia uma nova revolução vindo à tona, uma nova ordem de jovens que queria, até mesmo inconscientemente, negar todo o passado e a tradição cultural existentes. O que estava em voga no cinema deste período era justamente a impotência do homem diante do horror e a nova ordem que tomava conta do mundo. O cinema da época estava absolutamente centrado nessa ideia, de Hiroshima Meu Amor (1958) a Sindicato de Ladrões (1954), passando por vários de Nicholas Ray. É justamente sobre essa insegurança do pós-guerra que se baseia Hitchcock, que colocava James Stewart, justamente um ex-galã e maior símbolo do “bom americano” no papel de um policial limitado e inseguro em Um Corpo que Cai (1958), descaradamente o filme que serve de maior influência para Ilha do Medo.  Neste grande clássico do diretor inglês, o detetive se vê impotente após tomar consciência de sua própria incapacidade frente à realidade, carregando a culpa e o trauma paralisador por ter deixado que uma pessoa morresse inocentemente.

Também discutida de forma velada em Ilha do Medo, está o papel cultural da bomba atômica no século XX. Talvez a grande responsável pela revolução jovem no mundo, a onipresente possibilidade de que o planeta iria para os ares de um momento qualquer para o outro foi a mola propulsora para um ímpeto anárquico do aproveitar a vida aqui e agora, fomentando comportamentos inconsequentes e insanos, algo que culminou no desenvolvimento de novas drogas (sejam psicotrópicas ou alucinógenas) e no seu abuso – o rock surgiu justamente no ano em que se passa o filme. E com o advento da TV, citada pelos personagens do manicômio como "as vozes que invadem seu mundo", ficava cada vez mais discutível o conceito de possuir uma identidade própria, uma vez que o comportamento humano ficou cada vez mais à mercê das revoluções comportamentais. Quem sou “eu” nesse novo mundo repleto de novas realidades?

É irônico que Martin Scorsese, que é um grande estudioso da história do cinema, tenha optado por um projeto com esse viés logo após quebrar um jejum de mais de três décadas para finalmente ganhar o Oscar, um peso que carregou por toda a sua carreira. Ilha do Medo parece seu acerto de contas com o passado, um filme que fez despretensiosamente, movido somente por sua paixão pelo cinema. Mesmo assim, consegue ser ousado sem deixar de ser comercial. Ele, que passou de promissor talento independente, foi a própria vanguarda do grande cinema americano nos anos 70. Hoje é um veterano da velha guarda, medalhão dos estúdios, que com este filme busca uma nova identidade e frescor – algo que não fazia há muitos filmes. Ilha do Medo talvez surja para exorcizar sua imagem de cineasta católico que faz filmes sobre a máfia. Se o peso do passado lhe permitir.

Comentários (3)

Cristian Oliveira Bruno | quinta-feira, 28 de Novembro de 2013 - 16:47

Scorcese é mestre. Ninguém domina a história a ser contada como ele. Você sente o que ele quer que você sinta por seus personagens. Teddy Daniels e Dolores podem, tanto ser vítimas das situações, como vilões que causaram tais situções com suas escolhas e atitudes.
Um detalhe apaixonante (ao menos para mim) no filme: reparem, logo na primeira cena em que Teddy aparece, ainda no navio, à caminho da ilha, enjoado no banheiro. Quando ele ergue a cabeça, na primeira cena em que aparece o personagem, num close no rosto de Di Caprio, notem como o rosto do personagem parace desfocado em relação ao cenário, para, logo em seguida, o foco mudar para o rosto de Daniels e o cenário ficar em segundo plano, justamente quando o personagem repete para \"controlar-se por si mesmo\". Um belo artifício para nos dizer que acabamos de entrar no mundo de Teddy Daniels. Um toque de gênio do mostro por de trás das câmeras que é Scorcese!!!!

Maik Brasil | domingo, 10 de Agosto de 2014 - 01:24

Crítica média, poderia ter menos referências e falar mais do filme, é interessante o modo como você aborda os detalhes, não é lá nenhuma obra prima, longe disso. Porém vale a pena dar uma conferida.

Luiz F. Vila Nova | sexta-feira, 18 de Setembro de 2015 - 23:08

Ótima crítica. Um grande filme com uma parte técnica notável e DiCaprio em plena forma. Vale ressaltar que o diretor já tinha realizado um suspense hitchcockiano antes, o excepcional Cabo do Medo.

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