Entende-se por chanchadas um conjunto de filmes humorísticos de enorme sucesso no Brasil, em que números musicais eram bastante comuns durante a narrativa. Existem algumas catalogações rasas e generalistas dos filmes brasileiros que consideram que o gênero existiu entre as décadas de 1920 e de 1960 . A partir daí, tais filmes teriam perdido a expressão gradativamente, o diálogo com o público minguado e a produção teria sido interrompida.
O importante artigo Este é meu, é seu, é nosso – Introdução à paródia no cinema brasileiro , escrito por João Luiz Vieira e publicado na revista Filme Cultura em maio de 1983, inicia com um verbete de dicionário sobre o que seria Chanchada. Importo para este texto: “Peça teatral burlesca, que visa apenas o humorismo barato”. Logo após essa frase, o autor acrescenta: “O primeiro registro sobre filmes ‘chanchadas’ que será indicado aqui é de 1909 como provável início do estilo”.
Esquivando-se das catalogações fáceis, Vieira irá discorrer sobre o que seria esse suposto “humorismo barato” e o que estaria por trás desses filmes no cinema brasileiro. Dessa forma, o autor não se deteria em classificações superficiais sobre o que seriam as chanchadas, mas conceituaria um processo contínuo de um cinema de humor no Brasil. Algo que carregaria consigo certas tendências ao longo de mais de setenta anos de produção (e que perduram nos mais de trinta anos seguintes à publicação do artigo). O autor questiona o “humorismo barato” chanchadesco como uma condição sine qua non para todo e qualquer filme que fosse entendido como pertencente ao gênero: “O filme (Nem Sansão nem Dalila) discute ainda a relação entre os meios de comunicação e o poder, denuncia escândalos como a mistura de água no leite e o enfraquecimento da moeda local”.
Histórias que o nosso cinema (não) contava (2017), dirigido por Fernanda Pessoa, foca em uma espécie de continuação da tradição chanchadesca de avacalho, mas, agora, afeita aos tumultuados anos 1970 e à vida social de uma população majoritariamente urbana. Eram as pornochanchadas, filmes que receberam essa classificação por serem supostamente tão ruins quanto as chanchadas, mas com um tempero de pornografia softcore. Uma das forças da obra é iniciar a narrativa com a consciência de que existe um passado fílmico e social que faz parte do universo do gênero, legado importante para se entender uma certa tradição nos filmes de humor no Brasil. Contudo, assimila também algumas particularidades em um conjunto de obras que foram catalogadas como pornochanchadas.
O crítico José Carlos Avellar destacou em seu artigo Teoria da Relatividade, de 1979, uma relação quase umbilical entre a pornochanchada e a ditadura militar, como se uma dependesse da outra. Para os militares, esses filmes ocultavam outras obras com conteúdos políticos mais explícitos. Para a pornochanchada, a ditadura expunha os temas que serviam como conteúdo das obras. Se, por um lado, as pornochanchadas poderiam ser uma distração para a população que não se importava com a política do país, por outro, o debate sobre a condição social do Brasil se revelava nesses mesmos filmes. Fernanda Pessoa intenta elucidar tal dicotomia desde o título da obra: Histórias que o nosso cinema (não) contava. A relação zombeteira com Histórias que nossas babás (não) contavam é óbvia, mas a intenção de indicar que certos assuntos da política brasileira estavam nesses filmes é essencial para se relacionar de forma aprofundada com o universo que a diretora se interessou em enxertar em seu próprio trabalho.
Foi uma tarefa minuciosa para armar um panorama que integrasse os trechos de dezenas de filmes em pouco mais de uma hora e vinte de duração (o documentário é totalmente composto por essas sequências). O filme percorre diversos temas debatidos pelas pornochanchadas com fluidez e com uma construção de unidade muito bem integrada. Em um enxerto de Snuff, Vítimas do Prazer (1977), de Claudio Cunha, Juarez (interpretado pelo comediante Canarinho) comenta que irá tentar fazer cinema. Entretanto, ele precisa lidar com uma problema: “só não sei se vão aceitar preto”, ele diz. Um corte seco leva ao filme Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975), dirigido por Waldyr Onofre. Ali, o artista negro Saul (Haroldo de Oliveira) conta que, no teatro amador, já foi “jardineiro, copeiro, leiteiro”. E, logo depois, afirma que ninguém deixaria ele fazer Hamlet.
Cria-se uma espécie de campo/contracampo entre os dois filmes. Como se os personagens conversassem entre si. A temática da negritude se manifesta em Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava, destacando, assim, que tal discussão permeava filmes classificados como pornochanchadas. A construção fica ainda mais forte porque em nenhum momento Saul declara que não o deixariam interpretar a peça de W. Shakespeare por ser negro. A partir da montagem, contudo, subentende-se o preconceito que o excluiria de vários ciclos artísticos. Mesmo que o racismo seja uma discussão presente em Aventuras Amorosas de um Padeiro, Fernanda Pessoa consegue abordá-la com destreza, deslocando para seu filme trechos precisos das obras originais.
Assim, aos poucos, a realizadora vai desvelando um nó, revela o que sempre esteve nas pornochanchadas e, consequentemente, produz um olhar aguçado sobre o Brasil daquela época. Novamente, a montagem é essencial para dar uma dinâmica saborosa ao filme. Pois, mesmo que emende uma série de trechos de obras diversas, mantém a coesão e convida o espectador para um passeio pela a década de 1970, por meio de filmes que foram produzidos naqueles anos. A montagem também é perspicaz o suficiente para desfrutar de ótimos momentos em que o humor imperava. Como exemplo, há deliciosas explorações da dificuldade de sincronia entre som e imagem que compõem uma forma de humor comum à grande maioria dos filmes do gênero.
Durante as chanchadas, os críticos cinematográficos questionavam as dificuldades técnicas das produções nacionais. Essa situação se manteve com as pornochanchadas, questionadas por serem “mal feitas”. Em Bonitas e Gostosas (1978), o diretor Carlo Mossy debocha dos questionamentos sobre tais adversidades no cinema brasileiro. No último episódio (várias pornochanchadas eram uma reunião de episódios vendidos como um longa-metragem), surge a personagem Diva Gina, no alto de uma montanha, dublando uma das músicas da trilha sonora. A falta de sincronia entre música e dublagem é gritante. Deboche endereçado aos “defensores dos filmes bem-feitos”.
Chama a atenção como as pornochanchadas não se ressentiam de seus “defeitos” técnicos. Pelo contrário, os utilizavam como forma de destacar a grosseria presente nas narrativas. Se existia uma noção normativa de beleza, esses filmes deliberadamente a desconstruíam. E se os críticos cinematográficos questionavam a falta de qualidade técnica das chanchadas, a pornochanchada expunha de forma ainda mais esculhambadas esses supostos defeitos.
Há uma certa pachorra em não se importar muito com as deficiências impostas pela precariedade econômica que não se encontra mais no cinema brasileiro. Pelo contrário, atualmente, mesmo nos filmes de baixo orçamento, há uma necessidade de transparecer certa qualidade técnica como forma de valorização da produção. E as atuais comédias que lotam as salas de cinema do país, produzidas, em geral, com um orçamento bem polpudo na comparação com outras obras nacionais, dificilmente lidam com esses problemas. Fazem questão de realçar suas capacidades de produção. Quase como se quisessem esquecer um passado de escárnio e se vender ao público como obras de “bom tom”.
É curiosa a semelhança na recepção crítica desses filmes: assim como as pornochanchadas eram detonadas, as atuais globochanchadas também são menosprezadas pela intelligentsia do cinema brasileiro, que dedica a esses filmes nada mais do que uma profunda indiferença. Chega a ser engraçado notar que durante as chanchadas os críticos brasileiros pediam que os filmes fossem bem feitos tecnicamente, sérios, distanciando-se daquelas “bobagens carnavalizadas”.
Durante a pornochanchada, a crítica defendia que os filmes fossem comprometidos politicamente, e não aquelas “bobagens semipornográficas”. Atualmente, há um movimento crítico que demanda uma identidade carnavalizada, abrasileirada e não essas “bobagens bem produzidas tecnicamente, mas assépticas”. Ou seja, basicamente, voltam ao estágio inicial, clamam por filmes como aqueles das chanchadas e se cegam para a atual produção nacional de humor. Mais ainda, defendem o cinema independente que não chega ao grande público como se fora um oásis de ideias criativas e produções que estariam entre as melhores do mundo; contraponto qualificado aos filmes cômicos. Para as globochanchadas. apenas desprezo. Para a produção independente, os louros. Some a figura do crítico e aparece a figura do mediador cultural “operário padrão da comunidade cinematográfica”.
Não é o caso de defender que as comédias populares devam ser consideradas, a priori, grandes filmes, mas que haja um julgamento mais interessado e uma investigação maior a essas obras (aliás, mesmo o cinema independente brasileiro merece um olhar mais apurado e menos acrítico). É necessário colocar em jogo as ideias e discutir o pensamento que integra esse universo com profundidade. Reparar a diferença básica entre avaliar e julgar. Quem julga, olha de cima para baixo, com superioridade, como se não tivesse o porquê de se relacionar com algo de tão baixa estirpe. A avaliação, por outro lado, favorece uma relação corpo-a-corpo, um olhar mais justo e sem uma roupagem de superioridade. E, com exceção de poucos críticos, não há qualquer trabalho que se aproxime desses filmes com a mínima atenção.
Se há algo que Histórias que o Nosso Cinema (não) Contava revela, é a necessidade de apurar o olhar para os meandros dos filmes e livrar-se de pré-julgamentos fáceis. Os letreiros finais, inclusive, incluem uma mensagem da produção: “grande parte desses filmes permanecem esquecidos na memória do nosso cinema. Encontrá-los foi uma tarefa longa e difícil.” O desprezo pelas obras naquela época geraram uma maior dificuldade de preservação das mesmas. Dessa forma, filmes produzidos no Brasil há menos de quarenta anos se encontram indisponíveis para acesso do público.
Histórias que o Nosso Cinema (não) Contava deseja repetidamente transpor esse apagamento histórico. E evidência certos temas sociais espinhosos que foram debatidos nesse cinema popular: detectar os carros como enorme aspiração de uma classe média das grandes capitais brasileiras, por exemplo. Esse não é um fator comumente lembrado sobre as obras do gênero. Entretanto, se a fundação da capital federal, no início da década de 1960, tem a indústria automobilística como grande financiadora e, por esse motivo, há as longas vias expressas que cortam a cidade, é fácil pensar que essa tendência se espalhou pelo país. As indústrias automobilísticas ampliaram seu alcance e o carro tornou-se, cada vez mais, a imagem de uma classe média bem-sucedida. Mesmo em cidades fundadas muito antes da existência de qualquer automóvel no mundo.
Talvez essas referências não sejam tão explícitas como o sexo nesse gênero cinematográfico, mas é captada a relevância do fator automobilístico na transformação do país na década de 1970. O trecho de Amante Muito Louca (Denoy de Oliveira,1973) é revelador. Uma família passeia em um carro que não é seu e está completamente deslumbrada com a possibilidade de andar em um automóvel que representa certo status social. A esposa diz para o marido: “Você podia comprar um carro assim. Parece que a gente está voando”. O automóvel se torna exemplo do fascínio da população brasileira pelos bens duráveis e pelos símbolos de prestígio econômico.
Ao detectar as singularidades, é instigante notar a escolha deliberada de tratar do desenvolvimentismo social tão alardeado durante a ditadura militar. O tema surgiu de forma discreta nas chanchadas, seja pela complexidade, seja por um período específico da história do Brasil em que, munidos de um discurso nacionalista, os repressores tinham como propaganda política a construção de grandes obras. Estas seriam, supostamente, retratos da transformação no país e uma aproximação às nações de primeiro mundo.
A religiosidade é outro assunto pouco evidenciado em obras da época. No entanto, em um país de fé majoritariamente cristã e que até hoje é necessário sublinhar a laicidade do estado, é compreensível pensar que tais temas se revelariam nessas obras. Padre Albino (Líbero Rípoli), em A Árvore dos Sexos (Silvio de Abreu, 1977), é uma figura central nesse sentido. Ele surge em Histórias que o Nosso Cinema (não) Contava contestando um comportamento libidinoso e hedonista. No entanto, o que sobressalta são posições menos conservadoras. Também em A Árvore dos Sexos, Angélica (Nádia Lippi) questiona o porquê de ninguém poder falar sobre amar ou fazer filhos para o espanto das pessoas ao redor.
Em A Super-Fêmea (1979), dirigido por Aníbal Massaini, a protagonista também dá as suas opiniões sobre o tema. Afirma ser contra o casamento, marcando uma posição feminina de oposição ao que seria esperado em uma sociedade conservadora. A reprodução sexual divina não interessa a ela como os desejos profanos. Em Café na Cama (Alberto Pieralisi,1973), a imagem que a sociedade faz da mulher se esclarece. Num bate-papo, dois sujeitos de meia-idade conversam sobre uma bela garota. Quando um deles diz que tal menina é mais jovem que a filha do outro, aparece a resposta: “minha filha? Mas o que tem ela? Minha filha é diferente, é mais ingênua, é mais pura. Não pode despertar desejos pecaminosos.” A antiga, porém, ainda presente visão que vincula boa índole da mulher a sua virgindade. Assim como Santa Maria.
Ody Fraga faz chacota dessa suposta pureza feminina associada à religião em seu filme O Palácio de Vênus (1980). Ali, uma das prostitutas de um bordel manifesta sua fé com bastante afinco. A imagem de perdição das meretrizes é fraturada por essa personagem sem qualquer receio em manifestar sua crença. Em uma sequência de puro escárnio, ela interrompe uma relação sexual com um cliente para colocar a imagem de São Francisco de Assis virada para a parede e, assim, não alvoroçar o santo com a relação sexual prestes a acontecer.
Neste momento, deve-se retomar o artigo de João Luiz Vieira. No início da década de 1980, o autor já apresentava a ideia de uma perenidade da comicidade no cinema brasileiro, segundo o autor, especialmente por conta das paródias. Desde os primeiros filmes silenciosos, ainda em 1909 – dos quais só existem relatos impressos – até O Candidato Honesto 2, de 2018, o que se enraíza na produção cinematográfica brasileira é um humorismo que dialoga com o público por, justamente, radiografar um contexto social específico. Os exemplos disso brotam no filme de Fernanda Pessoa: seja pela abertura para um debate sobre o sexo, seja pela ascensão da classe média na figura do carro como um modo de “subir na vida”, seja ainda pela tortura cometida nos tempos de ditadura militar.
Nesse sentido, as pornochanchadas seriam uma fase dentro de um espectro de humor contínuo no cinema brasileiro. Para investigar atribuições como essa, contudo, é necessário mergulhar profundamente nos objetos fílmicos produzidos sem os desprezar por serem populares, malfeitos ou o que quer que seja. E essa tarefa, Histórias que o Nosso Cinema (não) Contava alcança com propriedade.
Fodaço
Obrigado, meu caro!!!
A pornochanchada era uma puta forma de resistência do cinema nacional tanto como produção própria quanto como vergalhão político/moral/social. Onde as relações alopravam na contextualização de um país em ebulição sexual com sua moralidade conservadora posta a prova com este cinema sendo válvula de escape do tesão. A montagem sensacional busca criar uma narrativa sobre estes temas gritados é foda. Assim como existem exemplos crassos de grossura com finesse que somente as pornochanchadas admitiam. Como no Excitação (1976) do Jean Garrett - fotografado pelo grande Carlos Reichembach - onde existem planos inteligentes entre mulher traída e casal traidor transando na praia com um movimento de câmera canalha e muito bem ajambrado, porém com uma luz altamente mentirosa e exagerada a iluminar os corpos. A metodologia desses filmes primava pelo exagero, mesmo quando pensado no moldes mais aceitos pela academia, acabava por avacalhar e manter sua gênese viva.
Marmotas muitas vezes propositais, outras tantas somente despreocupadas com demandas acadêmicas masturbatórias ou simplesmente por grossura adquirida, como o cinemão do Tony Vieira. A resistência canalha desse material é o seu legado.
Excelente texto meu chapa. Uma arqueologia ligeira de pura esculhambação.
Valeu mesmo, cara!!