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Críticas

Cineplayers

Tradição familiar, crueldade universal e fatalidade pessoal se unem para forjar a personalidade de um dos personagens mais notáveis de todos os tempos.

8,0

“A justiça vai considerá-lo louco e, no manicômio, os médicos poderão estudá-lo e descobrir o que ele é. O pequeno Hannibal morreu em 1944, na neve.”

No mundo contemporâneo, “louco” é uma palavra freqüentemente usada para nomear comportamentos que desafiam o aceitável. O catalogar modos de agir e de pensar, no entanto, joga no esquecimento boa parte da nossa herança histórica e cultural. A trajetória criada por Tom Harris para explicar a origem da personalidade e dos atos de Hannibal Lecter tem um pilar sólido: as concepções de honra e dever dos membros da nobreza, verificáveis em todos os tempos, em civilizações diversas. Hannibal é o herdeiro de uma tradição e o resultado do que herdou.

A Idade Média, período marcado pelas invasões bárbaras de territórios europeus e a formação de reinos e dinastias, registra uma infinidade de acontecimentos “loucos”, ocorridos com a participação e ou conivência de nobres, tais como as torturas por queimaduras, esfolamento, esquartejamento, a prática do empalamento, a fervura dos inimigos em óleo ou vinho, o cobrir os inimigos com mel e deixá-los às moscas, o apedrejamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, o canibalismo. Em tempos de guerra, de privações e de convulsões sociais profundas, práticas como estas foram largamente usadas pelos senhores com fins a defender seus domínios. Trata-se, pode-se dizer, de uma triste “exigência” da manutenção do poder e da vida em sociedade naqueles tempos, perfeitamente de acordo com Maquiavel, o filósofo autor de O Príncipe, obra que discorre sobre o papel dos soberanos diante do Estado. Porém, não são raros os relatos, feitos por historiadores, de casos de mero sadismo, assim como não o são os de gestos realmente elevados e bem intencionados. É desta tradição nobre e complexa que Hannibal descende.

Embora a cultura européia tenha sido profundamente moldada pela moralidade cristã, Nietzsche, em Genealogia da Moral, lembra que na história da humanidade, por um longo tempo, crueldade e vingança foram comportamentos perfeitamente aceitáveis e se constituíram na base da elaboração dos sistemas jurídicos.  Em outras palavras, a história apresentada em Hannibal – A Origem do Mal foi muito bem fundamentada em um passado histórico que interpretamos como “bárbaro”, mas de uma barbaridade que faz parte da animalidade humana, a qual as normas de convívio social procuram domar de todas as maneiras. 

No entanto, vez ou outra, surgem, tanto no cinema quanto na vida, personagens que não são, psicologicamente e biologicamente, capazes de assimilar regras morais e muito menos de agir de acordo com elas. Estes embora sejam perfeitamente capazes de entender, intelectualmente falando, o que é bom ou ruim, não são capazes de sentir empatia pelo sofrimento alheio. São os psicopatas, freqüentemente enfocados pelo cinema, e geralmente muito bem interpretados, entre os quais Hannibal Lecter é um dos mais famosos. 

No longa de Peter Webber, os acontecimentos da vida de Hannibal não são apresentados como uma justificativa e sim como uma trajetória cujo ponto inicial, de alguma forma, já se encontra vinculado à tradição familiar do personagem. A aranha que tece sua teia é um símbolo do tempo que constrói a história em cooperação com as escolhas humanas. Hannibal surge como o garotinho (Aaran Thomas) que brinca com a irmã, Mischa (Helena Lia Tachovska) no jardim do castelo de propriedade de sua família. Alarmados pela proximidade dos exércitos alemães, os Lecter reúnem-se, recolhem seus pertences e partem rumo a um refúgio considerado seguro. A fuga ocorre a tempo de fazê-los escapar da temível polícia secreta nazista, a SS. Mas a salvação não é o destino de todos. O refúgio da família fica no caminho do exército russo (que busca recuperar a região dominada pelos nazistas desde 1941), e é à mercê de um grupo de saqueadores que Hannibal e a irmã acabam por cair. 

Os acontecimentos que se seguem são os que definem a personalidade e o futuro de Hannibal Lecter. Porém, há um universo em movimento. O psicopata em formação está se desenvolvendo por meio da relação íntima entre a tradição histórica de sua linhagem, suas tendências naturais (biológicas) e a história que os homens constróem no mundo. O trauma que envolve o menino é a própria experiência do mal supremo que por momentos triunfa e abala o mundo. Algo tão inaceitável por adultos quanto incompreensível para crianças. Porém, nota-se que quando tudo ocorre Hannibal já sabe ler e escrever, foi criado em meio ao requinte e tradição de uma família de nobres (e a formação da nobreza lituana atravessa a Idade Média), já tem noção de propriedade e de lealdade familiar. Seus valores infantis são aqueles aprendidos em sua curta vida entre os seus. É apenas com esta base –  deformada pelo horror e incompreensão da criança e finalmente congelada na adolescência – com que o adolescente e o adulto pode contar.

Resgatado pelo exército russo, que anexa a Lituânia a seus territórios, Hannibal, já adolescente (e na pele do ator francês Gaspard Ulliel), ressurge como interno do orfanato instalado no próprio Castelo Lecter, de onde foge em busca de um tio, um conde que estaria na França. Em fuga, ele atravessa Varsóvia e sobrevive ao atravessar o muro de Berlim. Na França encontra Lady Murasaki Shikibu (Gong Li), viúva do tio já morto. Ambos compartilham de uma dor em comum: a perda de suas família. Murasaki, que perdeu a sua por força da bomba lançada sobre Hiroshima, torna-se o bálsamo que cura as feridas abertas na alma do jovem Lecter, sem jamais conseguir fazer cicatrizar as chagas mais profundas.  Com a tia ele aprende os segredos das artes marciais e a disciplina japonesa e sufoca a amargura, ao menos o suficiente para voltar a viver em sociedade e tornar-se um estudante, com bolsa de estudos para cursar Psiquiatria. 

Gaspard Ulliel, com aparência de adolescente, assume as maneiras de homem adulto. Seu trabalho de voz é o que mais faz lembrar a interpretação de Anthony Hoppins para o mesmo personagem, imotalizado nas telas de cinema a partir de O Silêncio dos Inocentes. Sua economia de gestos, o olhar vazio algumas vezes, melancólico em outros e serenamente sádico em outros tantos, não destoa  do que se tornaria o personagem em sua idade madura. A seqüência que se inicia aos 1:40:12hs, especialmente, mostra do que o ator é capaz. Junto ao rosto sempre propositalmente inexpressivo de Gong Li, Ulliel imprime um tom torturado a todo o filme, mas de uma tortura interiorizada e profundamente estabelecida. Não há emoções turbulentas, pois ambos parecem em permanente estado de suspensão como só acontece com os irremediavelmente feridos. 

O roteiro é simples, direto. As memórias de Hannibal não chegam a alterar a construção linear que, neste caso, até favorece o mergulho na história e prende a atenção. Se não tenta inovar, também não é cansativo. A trilha sonora,  agradável e apropriada, transita entre o onírico e a fatalidade, perfeitamente de acordo com o fluxo de imagens. O que há de negativo não chega a colocar a obra a perder, mas é verdade que a compromente. Algumas seqüências lembram os filmes de ação, mostrando Hannibal a atravessar a cidade em sua motocicleta, ou distribuindo socos em luta corporal. Quem está acostumado com a elegância e a violência mental do personagem estranha quando ele, meio desajeitadamente, usa os punhos. Mas isso até seria irrelevante se não fosse a seqüência final. Em uma tentativa de fazer algo análogo ao final de O Silêncio dos Inocentes, Webber conseguiu apenas filmar um final desastrado, fora de ritmo, fora de tom, com interpretações equivocadas, com a música errada. Os acontecimentos deveriam mesmo ser aqueles, mas não mostrados de forma tão inábil.

Para aqueles que são admiradores do personagem, não há nada de muito surpreendente na história de Harris, o que não desmerecer o  filme de Webber, desde que avaliado em si mesmo. A Segunda Guerra Mundial deveria mesmo assumir, direta ou indiretamente, algum papel na formação de Hannibal devido à idade do personagem. Em O Silêncio dos Inocentes, Dragão Vermelho e Hannibal, seus gestos, fala pausada e gostos refinados já denunciavam sua origem nobre e possivelmente européia. A opção profissional (médico psiquiatra) obviamente implicavam na prática de dissecação de cadáveres em algum momento. A psicopatia, geralmente, implica traumas de infância, apenas não se sabia qual seria. 

Enfim, a história não foge do óbvio, mas como um todo o filme é interessante na maior parte do tempo. O que não fica explicado é o fascínio que o personagem exerce. Para ajudar a compreender tal sentimento, O Silêncio dos Inocentes ainda é o mais adequado da série.

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