Há uma razão bem simples para explicar o sucesso atemporal de alguns filmes de terror em contraste com tantos outros que são esquecidos alguns minutos após o fim da projeção. Nos slashers, por exemplo, há uma série de obrigatoriedades que muitas vezes limitam as possibilidades do filme – o assassino mascarado, a arma branca, os adolescentes-vítimas, as final girls, as cenas de sexo como um prenúncio da aproximação da morte, os retornos infindáveis dos vilões aparentemente imortais – e que em alguns casos são capazes de arrepiar a espinha, enquanto em outros não fazem nem cócegas. Teoricamente, os mesmos ingredientes deveriam dar certo (ou errado) em todos os casos, mas por alguma razão não é isso que acontece. E a tal razão é bem simples: há uma gigantesca diferença entre o medo imposto e o medo estimulado. Há diretores que jogam em cena situações assustadoras, mas não entendem que isso não significa necessariamente um alcance de êxito; enquanto outros deixam por conta do próprio espectador desenvolver o medo, sem a necessidade de vê-lo materializado na tela o tempo todo. Até porque o medo é um sentimento muito subjetivo, relativo e principalmente pessoal. O que causa horror em um pode provocar risadas em outro. Então como usar o medo em seu conceito mais básico, simples, e deixar por conta do próprio espectador desenvolvê-lo?
Halloween – A Noite do Terror (Halloween, 1978), de John Carpenter, considerado por muitos como o primeiro slasher tradicional, servirá de base para entendermos um pouco essa ideia apresentada acima. Temos neste filme uma rica exploração dos conceitos do medo e uma bela lição de como saber usa-los da maneira mais eficiente possível. A famosa história de Michael Myers – rapaz que na infância assassinou sua própria irmã e que depois de passar quinze anos preso em um hospício, foge na noite de Halloween de volta para sua cidade natal e começa uma série de assassinatos aos jovens de lá – já virou uma tradição para os fãs de filmes de terror. Myers não é apenas um famoso vilão do cinema, ou um modelo para o aparecimento de inúmeros outros famosos vilões que viriam a surgir futuramente em trabalhos semelhantes; ele é a personificação perfeita dos temores mais básicos, instintivos, do imaginário humano. Sua imagem é fortemente associada à escuridão, ao obscuro, ao parcial – e não é preciso muito mais que isso para ele ganhar uma vida própria, e extremamente particular, dentro da cabeça de cada individual espectador.
Quem nunca ouviu a história do bicho-papão (ou boogeyman para os americanos) quando era pequeno? Apesar de ser uma história muito repassada de geração após geração, o bicho-papão nunca teve uma imagem definitiva. Para alguns era o peludo monstro do armário, de olhos esbugalhados e garras e dentes afiados; para outros, talvez fosse aquele cara estranho que de vez em quando passava na rua e que mamãe alertava; enquanto para outros tantos talvez pudesse ser aquele vulto disforme se movendo na escuridão do quarto à noite. Entre tantas teorias, o que temos certeza é que o tal bicho-papão nada mais passa do que uma semente plantada em nossa cabeça, que cresce e se transforma em nosso próprio monstro particular, se alimentando de tudo aquilo que mais temos medo e formando assim uma identidade própria – a perfeita materialização de nossos temores em uma só pessoa. No caso de Michael Myers e na forma como John Carpenter o utiliza em Halloween, não é muito diferente.
Dentro do imaginário coletivo dos adolescentes, Michael Myers é a representação da chegada da vida adulta e das responsabilidades que essa fase acarreta consigo. Fisicamente representa o temor infantil de um corpulento e ameaçador bicho-papão, mas em seu conceito ele reúne os novos medos que a vida nos traz conforme vamos crescendo, como a descoberta do sexo e o rompimento definitivo com a pureza que um dia fez parte de nossa realidade cotidiana. É a fase definitiva, cortante, delicada e – em um filme de terror – mortal da nossa existência, quando não há mais a possibilidade de fugir daquilo que sempre nos assombrou de alguma maneira. Para os personagens de Halloween, e mesmo para nós espectadores, Michael Myers é uma porta para o amadurecimento, e nada mais será como antes depois dele.
Ciente de toda essa simbologia por trás da simples figura de um assassino em um filme de terror adolescente, John Carpenter entra em cena com sua técnica indefectível e faz de seu vilão um verdadeiro tormento psicológico – e tudo isso sem precisar usá-lo o tempo todo. Sua ideia é equivaler a presença de Michael Myers com a escuridão da fotografia e dos ambientes do filme, de forma que quanto mais a iluminação vai enfraquecendo, mais cresce o suspense em volta de sua posição. Em um filme em que a escuridão é praticamente onipresente, é quase impossível não enlouquecer com a suspeita. A cada novo enquadramento, cada nova cena, é automático percorrer freneticamente os olhos em torno de cada canto do ambiente à procura de algum sinal que indique a localização exata do psicopata – embora muitas vezes ele nem esteja de fato presente, se tornando apenas um fruto de nossa imaginação traumatizada. Por conta disso, a figura concreta de Myers é pouquíssimas vezes utilizada por Carpenter, porque ele sabe que seu verdadeiro lar é dentro do subconsciente de cada espectador. Ele apenas nos oferece a situação, o cenário e o argumento inicial, e quem os preenche são as nossas próprias projeções.
Em parceria com essa opção de fotografia escura há o jogo de câmeras subjetivas usado por Carpenter. Logo nos momentos inicias ela é usada na pessoa do assassino, ainda criança, em seu primeiro assassinato. Depois temos uma câmera ainda trepidante, mas não há certeza de que se trata do olhar de Myers, brincando com a percepção do espectador, que nunca pode ter certeza se está diante de um enquadramento corriqueiro ou se está compartilhando da visão do próprio bicho papão. Há momentos em que pode haver a certeza de que estamos ao lado dele, mas de repente o flagramos percorrendo furtivamente o fundo daquele enquadramento escurecido e perdemos a referência visual, aterrorizados diante da incerteza de sua exata localização. Aliadas essas duas técnicas temos um vilão onipresente, embora poucas vezes materializado nitidamente na tela, de modo que o horror de toda a brincadeira se encontra não no filme especificamente, e sim em nossa própria cabeça.
Reside aí a grande razão pela qual Halloween se mostra um trabalho tão instigante. Em momento algum o medo nos é apresentado através de cenas explícitas de violência, sanguinolência e tortura – como é o caso da maioria dos slashers atuais. A grande sacada dessa curiosa mise-en-scène é a exploração do medo existente dentro de cada um de nós, e por isso durante o tempo todo Michael Myers não passa de um fruto da nossa projeção de um particular bicho-papão. E não tem como errar através dessa fórmula, afinal, quem estipula o que dá medo o tempo todo é o próprio espectador; e ninguém melhor você mesmo para conhecer aquilo que lhe causa horror.
Halloween foi o precursor do que viriam a ser os tradicionais slashers americanos, embora não tenha sido o primeiro de todos. Noite do Terror (Black Christmas, 1974), por exemplo, foi lançado quatro anos antes e é um grande exemplar. Mas Halloween acabou se destacando pelo fato de que estabeleceu certas regras e particularidades indispensáveis para o subgênero, que viriam a ser seguidas religiosamente dali em diante (bem apresentadas pelo personagem Randy no terror metalinguístico Pânico [Scream, 1996], uma espécie de homenagem a John Carpenter e a outros mestres do terror feita por Wes Craven e Kevin Williamson). Entre estas regras está o tabu da virgindade e a forma como isso se associa com a chance de escapar vivo dos massacres promovidos pelos vilões. O sexo, a bebida e a rebeldia formam o “fator pecado”, que de alguma forma atrai a atenção do assassino e praticamente significa uma sentença de morte; por isso os personagens mais avançadinhos costumam morrer primeiro, enquanto as mocinhas virgens e castas são deixadas por último (tal qual a Laurie Strode de Jamie Lee Curtis, a rainha dos slashers), como se o assassino quisesse matá-las de uma maneira especial, tirando delas a pureza virginal através da morte – uma forte associação entre a penetração das armas brancas (como facas) e a penetração sexual. Claro que hoje sexo e virgindade não são mais tabus para nenhum adolescente, então essa regra implícita é pouco explorada nos filmes atuais, onde a moral perde a vez para a banalização da violência e do sexo.
Independente da validade de algumas regras lançadas por Halloween que foram perdendo sua importância pelo passar dos anos e pelas mudanças sociais contemporâneas, seu valor como cinema é inestimável. Além de ser uma verdadeira aula no manuseio de câmera e na composição visual dos enquadramentos, é um dos poucos filmes de terror que sabe explorar a fundo a sugestão do medo como algo muito mais climático, intenso e eficiente do que a materialização deste. Por isso passou intocável pelos efeitos do tempo e mesmo hoje permanece um filme horripilante, capaz de desenterrar de dentro de cada um de nós os temores mais primários e recônditos – trazendo pra fora aquele bicho-papão adormecido nas lembranças de infância, e que agora parece muito mais palpável, concreto e enlouquecedoramente próximo.
Obra-prima é pouco, a cada filme que vejo do carpenter é o filme que sempre sonhei fazer.
Excelente crítica para um dos clássicos do terror. Deu vontade de rever, pois ví faz tempo e nem me lembro mais como é.
Gosto muito desse filme, não consigo deixar de dar 10,0...
Brilhante sua critica Heitor, parabéns.
Carpenter, mestre supremo do terror. O cara tem minha admiração. Esse filme supera qualquer outro slasher já feito. Desafio alguém a encontrar um melhor que esta obra do mestre.