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Halloween

(Halloween, 2018)
7,0
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Críticas

Cineplayers

A mitificação mascarada de monstros em perspectiva

7,0

Mais uma linha temporal duma saga demasiadamente modificada. Pelo menos 4 linhas definidas. Este material mais recente recebe o crédito por ter o envolvimento do criador da obra original John Carpenter – que neste entra como produtor executivo e compositor da trilha sonora, este último crédito em parceria com Cody Carpenter (filho do mestre) e Daniel A. Davies. A intenção aqui é dar um novo respiro à saga após tantos reveses, principalmente pelo revisionismo grosso dado pelo Rob Zombie, no qual grande parte dos fãs (e críticos) execra. Eu particularmente curto o material do Zombie, mas este não é o ponto. Diante disso coube à Blumhouse buscar desenrolar um esquema “novo”. Inclusive quando o dono Jason Blum esculhambou o Carpenter de reclamão pra fazê-lo participar no filme. Palavras do próprio Carpenter. Ditas as informações iniciais vamos a esta releitura que vincula um misto de respeito ao original, e remetendo a outros slashers e seus vícios, com uma busca por novos públicos. Principalmente no campo da violência e na renovação dalgumas características dos personagens frente à novos tempos. E nada mais justo que dois dos nomes principais do elenco original voltam à luta. Jamie Lee Curtis como Laurie e Nick Castle como Michael Myers.

O retorno dum mito. O direcionamento para tal intenção tanto do trato com câmera e personagens quanto na trilha. Impor a presença do monstro, do mal, da criatura mítica. Por isso o início no manicômio numa busca de jornalistas por uma história ainda vívida. A busca por Michael Myers. O mito vive. A abertura dos letreiros esperta fazendo uma releitura da original, com uma abóbora – mais conhecido aqui no Ceará como jerimum – ressuscitando. É a volta desse anormal. Bom acerto ao mostrar visualmente como estão seus personagens após estes 40 anos. O isolamento de aberração e vítima e as consequências que permaneceram em ambos, e aquilo que mudara neles (ou não). Nisso constrói-se uma insistência narrativa por este encontro. Algo altamente óbvio, mas que o diretor David Gordon Green e equipe foram marotos metendo estratagemas de inversão na mitificação vagarosa de seus personagens. Se os detalhes ao longe que remetem ao primeiro filme, mostrando o Vilão sempre presente, Laurie também entra no mesmo esquema de perspectivas e sumidas, além de momentos dos personagens em primeira pessoa. Onde antes no original somente Myers perscrutava as figuras, Laurie agora também o faz. Com outros intuitos, mas mantém uma rima dialética interessante com o primeirão de 1978.

O que diabos é um mito? O mito é o somatório de elementos que conurbam numa situação fantástica protagonizada por figuras extraordinárias. Esta quimera é usada para explicar aquilo considerado inexplicável. Antes, em antigas civilizações, buscava-se impor ordem social mínima através de explicações míticas de religião e punição, assim como explanar acerca daquilo que era sobrenatural e que não continha explicação tácita. Como afirmar, por exemplo, que o Sol era um Deus. A invenção maniqueísta punitiva entre bem e mal vem daí. Em materiais de reza hoje eminentemente difundidos nas religiões ocidentais embalsamadas no seio europeu. O punitivismo controlador da vida eterna através do castigo frente aos desrespeitos de deidades estabelecidas, viria com ajuda peremptória de mitos e lendas. Ou seja, o ser humano inventa controlos para si na busca por uma condição de existência social coletiva. Coibindo instintos animais. Antes de existir a história e filosofia como ciências, eram estas alegorias que propunham um entendimento social, histórico e filosófico que permeava a vivência da localidade na qual estas criações eram divulgadas e aplicadas. A modernização disto viria através do extraordinário dalgumas figuras. Como quando um grande artista chocava sua realidade com uma obra considerada por muitos a frente do seu tempo – algo que a história como ciência abomina a terminologia – e não vista em comparação a outros trabalhos. Uma linha tênue entre realidade e exagero, que para ser explicado chegava junto no campo simbólico. Quer um exemplo? Como se explicita que o grande bluesman dos anos 20, Robert Johnson, teria vendido sua alma ao demônio numa encruzilhada para a obtenção de sucesso e, assim, sua alma teria sido coletada logo após o mesmo começar a divulgar seu dom. E aqui mora o mal do Michael Myers, nesta linha entre o real do serial killer mascarado e o mítico dum mal encarnado a atemorizar uma cidade, que para ser explicado necessitaria da tão citada mitificação. E dentro dum aspecto de recorte específico na data, o mito se precipita. Outro acerto da construção do personagem lá atrás, no 31 de outubro de 1978. A vinculação dum escroto a um acontecimento cultural histórico que se repete. Ritualisticamente. O horror como brincadeira vira realidade diegética e desespero para aqueles personagens. A presença do mal.

Dentro desta perspectiva, a fita se interessa pelos personagens principais e como trata-los na narrativa, o que acaba por descartar uma possível sonhada imprevisibilidade das vítimas. Mas o objetivo é coerente. Sem interesse no incomum. A perambulação de Myers e a sisudez paranoica de Laurie importam mais do que isto. Mas não falta truculência e violência. Esta última até vem com certo capricho, onde os corpos são fortemente tratados como nada para a trajetória imparável e Michael. O que interessa é o percurso seguido por ele, com sangue e vísceras com boa dose de grosseira até. Os olhares dele perscrutam àqueles que executa num misto de estranhamento e total indiferença para com os mortos. A câmera mostra isso direitinho.

E que trilha sonora foda. Se a narrativa mitifica Myers, o som assim também o faz, desde sua abertura. Melhor coisa da fita, para apontar na lata. Encaixa com o clima proposto e com a dinâmica que a fita exige nos mais diversos momentos. Do silêncio triste e sepulcral de lembranças passadas por Laurie – onde o piano persiste lentamente e num volume baixo acompanhando o drama central dela – ao auge da tensão causada por um gigante no encalço da morte alheia – acelerando e desacelerando na proporção que as imagens pedem, onde o monstro vai comparecendo na brutalidade. Tudo cheira a este mito. Esta espécie de vaca sagrada do terror.

Homenageia o material original e até usa bem dos clichês do slasher, mas acaba por vacilar nos irritantes personagens adolescentes e nas suas possíveis trajetórias. O que causa um aborrecimento constante. Um cacoete slasher. Pelo menos foi rápido com eles. Papocam ou somem rapidamente. A intenção é preparar o terreno para o destroço. E teve a boa ideia de tirar uma onda daquilo que realmente choca hoje. Na era da banalização da violência, um sujeito que matou algumas pessoas a facadas não parece muita coisa.

Os vínculos dos adolescentes entre si servem para duas coisas; 1, serem massas de carne para o abate; 2, úteis para darem mais camadas à personagem da neta de Laurie, Allyson – Andi Matichak. Assim como o passado da mãe e da avó as assombram. Tem um tom besta e medíocre que se perdem alguns minutos nesta conversa mole. A trajetória da mãe Karen Strode – Judy Greer – é mais traumática e ligada diretamente na avó, quando esta última criou a primeira na base da paranoia vinculada à sua experiência empírica de morticínio quando era manceba. Nisso a mãe passa a vida toda tentando se desvencilhar da loucura da avó, enquanto esta última parece um fantasma num primeiro olhar, para revelar-se uma guerreira em dado ponto, inclusive a herdar características do Michael Myers. São a três mulheres combatendo. Unindo-se pelo âmbito da sobrevivência da família. A avó Laurie Strode de Jamie Lee Curtis (mostrando a grande atriz que sempre foi e tendo que demonstrar tanto sapiência e experiência quanto certo vigor físico) passa por um processo de saraconnização da scream queen no original, para uma vingadora preparada para o apocalipse. Uma escolha acertada, não original claro, da equipe criativa ao por as gerações da família Strode contra o perverso, principalmente pelas consequências do tempo, que Michael ajudou a formatar lá atrás.

Eu já falei que o filme mitifica o Michael Myers? Obviamente a câmera assim o perscruta inadiavelmente. Desde o acerto no início ao trata-lo na solitude da falta de reação. Desde o chão xadrez tétrico aos grunhidos proferidos pelos loucos ao redor do animal quando o mostram a sua máscara. O mito influencia àqueles que estão ao seu redor. A máscara sendo colocada mostra o poder do símbolo, como se faltasse ainda algo para completar a transformação.

E o personagem do médico Sartain (Haluk Bilginer)? A reviravolta dele. Desde o começo, o seu interesse pelo paciente é objetificado na tela. Seja pela curiosidade médica, ou pelo afã de descobrir realmente a origem daquela figura. De onde vem este mal. Acabamos por descobrir que este escroto é mais um influenciado pelo mito Michael Myers. Querendo sentir o que ele sente através da percepção da morte. A antítese do Loomis de Donald Pleasence, e díspare do oportunista e despirocado Loomis no Halloween II do Rob Zombie, que fora feito pelo Malcolm McDowell que buscara lucrar com a história de morticínio. Sartain absorve a psicopatia do Myers. A herança maldita do mito. A máscara chega a servi-lo num determinado momento de insanidade e teste. Como se a mesma servisse de chave deste tesão. A caracterização da serventia do destroço. Uma das boas surpresas que, infelizmente, se finda rapidamente. O filme tem estes problemas exatamente por abordar personagens ruins e perdendo tempo com estes, enquanto outros tantos mereciam um tratamento mais aprofundado.

A perspectiva do caçador. A câmera o segue em busca do retorno ao sentimento de 1978. É o que deseja a equipe criativa. A sua maneira. Ele arrodeia a câmera mostrando a movimentação sorrateira do carrasco, que se mantém a caminhar. Aqui um aceno não só ao Halloween primeiro, mas às mais variadas sagas com seus vilões truculentos, com outro exemplo-mor em Jason Vorhees (da saga sexta-feira 13), que nos filmes posteriores viraria uma fera deste porte. O bicho-papão aqui fica perambulando. O tensionamento desta mitologia, como quando as lentes o seguem curiosas e chegam pro lado captando a reação das pessoas, que mesmo fantasiadas para o halloween se assustam com a figura mascarada a sua frente. Nisto a câmera vira e para, denotando a fera a observar uma casa, em seguida se movimenta e entra na casa e trucida a mulher que lá estava. Isto e mais um plano-sequência do próprio numa caçada atestam o argumento maroto do vilão que caminha e faz esculhambações possíveis quando quer. Boa homenagem.

As mortes vão se acumulando. Frontais. Sem invenções. Como já afirmei, o desinteresse aqui é completo pelos personagens. Interessando mesmo Myers e Laurie Strode, tanto que as mortes não causam impacto pelas vítimas, mas sim pelo prazer de se ver isto no terror. Não há aqui o desespero genuíno dos personagens que serve para crescer a tensão e aloprar camadas a mais na fita. O terror claustrofóbico ao final é resolvido com as três mulheres armando para Michael. O encontro se findara até então. Myers some e permanece como mito dentro e fora das telas. O mal sem explicação, que precisa destas alegorias para ser contado, que escapa da realidade. Quando não entendemos o que está diante de nós, o temor nos apavora ou nos corrompe com a ira. Por isso o limbo sem origem do mal encarnado de Myers é tão funcional, que basta saber focar no serviço do abusado que a obra funciona. Por sorte este aqui ainda consegue meter uma Laurie Strode à altura. Laurie monstra. 40 anos. O fogo purificador? Do inferno? Halloween Kills. O mal. O mal. O mal.

Texto originalmente publicado no dia 31 de outubro de 2020, na edição nº 1 da Revista Cine Cafe.

 

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