Livre manifesto em defesa do cinema (de Luhrmann) – ou algo como “a desilusão de Fitzgerald permanece”.
Em 2013, as escolhas de Luhrmann já parecem destinadas a não agradar a ninguém. É o cineasta do meio do caminho, da contramão. Comparações com Ed Wood, o pior cineasta da história, vem ocorrendo, e, por um lado, deveriam ser bem vindas: ao menos não é mal intencionado; há autoria, certa integridade, e uma indubitável lealdade no que o diretor acredita em sua visão pessoal de cinema. Oportunismo não é a tônica. Ingredientes para o insucesso na certa.
O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 2013), na versão de Luhrmann, é, também, um exercício de linguagem, uma ode a história do cinema, como fez em Moulin Rouge - Amor em Vermelho (Moulin Rouge!, 2001), em Romeo + Julieta (Romeo + Juliet, 1996), e no malhado Austrália (Australia, 2008) - há sempre o grande sincretismo onde se vê o cinema musical, o burlesco, o kitsch, o erudito, a música pop, e como já é de praxe em toda a sua filmografia, encaixa-se no filão das chamadas obras pós-modernas. Há um reflexo do nosso tempo? Talvez já seja tarde demais. Mas, no entanto, em O Grande Gatsby, ele não diminui, não simplifica a mensagem do livro, que é uma leitura bastante densa da sociedade e dos sentimentos humanos. Vivemos na era da simplificação. E por assim ser, tem fracasso de público certo ao não decair para o pastiche, a paródia, a sátira, o humor, a promiscuidade, a leviandade, acima de tudo, a frivolidade, este elemento tão bem quisto e louvado por todos nestes tempos. Em certo momento, com muita distinção, Luhrmann cita Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) em o Grande Gatsby. Quem percebeu? Quem se importa? Isso importa? Não é suficientemente descartável, não chega ao nível do modismo, do entretenimento vazio. O Grande Gatsby é a adaptação de um clássico da literatura para a indústria de Hollywood – mas não somente mais um clássico, e sim do romance que provavelmente é a obra mais importante da literatura do país mais importante economicamente do mundo. Não há como adaptar um livro desses para o cinema sem ser apedrejado, qualquer que seja o resultado. Por trabalhar com textos imaculados pela história, de Shakespeare a Fitzgerald, Luhrmann sabe dos riscos mas não se intimida, assume o tiro que dá no próprio pé. Mas Luhrmann, o nosso Ed Wood, parece leal a seus delírios, a sua forma de particular de fazer cinema.
Não se tratam somente de releituras ao gosto atual – são também releituras ao seu gosto, ao seu bel-prazer. Por isso mesmo, tem fracasso de crítica certo por imprimir o seu estilo ao cânone consagrado, misturando a alta cultura de um compositor erudito como George Gershwin com músicas contemporâneas de Lana Del Rey, Beyonce e Jay-Z. Faz de um clássico da literatura de 1925 uma edição frenética, livre movimentação da câmera nos espaço diegético, planos que não duram mais que 3 segundos, uso ostensivo de computação gráfica e tratamento de cor em pós produção. E, claro, muita música pontuando todas as cenas. Nesse sentido, para certa ala parece não ter estofo intelectual suficiente para levar um clássico a sério, fazer uma adaptação à altura, ou que pelo menos seja vista de forma fiel ao manuscrito e o contexto original. De um lado, rema contra a estupidez e boçalidade que se espera de tudo que é feito para agradar um público numeroso. De outro, luta contra o saudosismo, o conservadorismo da velha guarda, que não admite ruídos e impurezas. Tudo é uma questão de ponto de vista.
O Grande Gatsby vem sido alardeado pela internet com os adjetivos mais horripilantes que se podem chamar um filme. É um fenômeno curioso. Um pouco de lucidez não faz mal a ninguém, e parece um tanto óbvio que não pode ser tão ruim assim. O que deve ser pensado são as razões que fazem com que a receptividade a um filme bom como este seja tão hostil. Torna-se inevitável divagar, pensar alto, em paralelo, que vivemos num tempo onde se celebra com louvor que qualquer jovem imbecil, que jamais passou perto de qualquer obra de literatura, faça filmes utilizando máquinas fotográficas da Canon e poste no YouTube qualquer porcaria apelativa e oportunista, e rapidamente ganhe o status de genialidade, de grande arte do nosso tempo, de reflexão social. Há estudos que dizem, que a cada novo meio, novo formato que surge, a linguagem volta a estaca a zero – de games do Wii a vídeos para internet. Nesse sentido a internet e o cinema digital de baixo custo, em suas duvidosas democracias, servem de um imenso manto, uma força inexpugnável que arrasta tudo e todos rumo ao amadorismo, à mediocridade, à estupidez. Afetam o gosto popular, nivelam por baixo. Há um livro interessante sobre o tema, evidentemente pouco divulgado, chamado O Culto do Amador, de Andrew Keen. A mesma força que gera tratamento sério para qualquer picaretagem postada no YouTube e nas redes sociais é a mesma que, com bastante leviandade, diz as maiores atrocidades para o cinema de Baz Luhrmann, e por conseguinte o mais grave: para uma adaptação da obra de F. Scott Fitzgerald. Nesse contexto, a linguagem de Luhrmann, os temas tratados por Fitzgerald, o cinema exibido em sala de projeções, a intenção de se levar Gatsby ao cinema outra vez parece algo excessivamente datado e irrelevante, distante de todos nós. Tem se a sensação de que o tiro saiu pela culatra: ao querer se fazer uma versão atual de Gatsby, pós-televisão, pós-videclipe, esse mesmo contexto atual o rejeita pelos mais variados motivos, como alguns já citados. O estrago já está feito. O dilema humano do solitário e milionário Jay Gatsby simplesmente passou a não existir, a não encontrar identificação com quem quer que seja do público. Como palavras que deixam de existir.
Soa bastante admirável alguém querer adaptar Fitzgerald para o cinema de Hollywood atualmente. Adaptações sempre foram constantes, ainda hoje, como Os Miseráveis (Les Misérables, 2012), de Tom Hooper. Nem sempre bem recebidas, nem sempre com bons resultados – já diz o infame bordão: “grande literatura não se traduz em grande cinema”. Mas, em um período que a indústria do cinema vive o seu pior momento, sobrevivendo quase exclusivamente na base de filmes de super-heróis e franquias com alto nível de retardamento mental, como Se beber Não Case, Velozes e Furiosos, Crepúsculo, comédias brasileiras com atores de novela, enfim, a lista é enorme, trazer os dilemas da condição humana de O Grande Gatsby para o grande cinema, para o público de larga escala, por si só deve ser aplaudido de pé.
Dizer que Luhrmann acaba com o livro, faz de uma trama séria algo histriônico, afetado, eloquente, em detrimento da sutileza e de uma suposta “moral” edificante do escritor... quanta bobagem. Quem diz isso, ou jamais leu qualquer livro Fitzgerald, ou jamais o compreendeu. Ou pior, não sabe nada da vida do autor. F. Scott Fitzgerald jamais foi maniqueísta, e ele mesmo sempre nutriu sentimentos bastante dúbios quanto ao estilo de vida esbanjador do norte-americano cosmopolita da Era do Jazz. Ao seu modo, é um estudioso do conceito de beleza que nascia à medida que os EUA se tornavam a grande potência econômica no mundo, de quais passam a ser os signos que estabelecem relações de poder – fenômeno que sempre ocorre quando um império surge, como na Grécia, em Roma, etc. Há uma força estética que emana das festas, da música, da bebida, da elegância, das boas roupas, das boas louças, da potência dos carros, da velocidade, dos pequenos prazeres, dos prazeres mundanos, da beleza e o vigor da juventude. Fitzgerald está muito mais para a profundidade do pensamento de Oscar Wilde (“O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível”) do que para uma mera oposição rasa a sociedade, ao “american way of life”, como gostam de proferir de maneira reducionista por aí.
Sua desilusão é com a vida, é com a natureza humana. Fitzgerald, de clássicos como Este Lado do Paraíso e Suave é a Noite, é mais que um crítico social, é sobretudo alguém que faz retratos, que traz personagens que refletem dilemas do conflito existencial, conflitos e inquietações do próprio autor, talentoso mas desiludido, cuja vida for marcada por um sucesso prematuro, um casamento problemático e, talvez mais tragicamente, pelo rápido declínio provocado por uma terrível e fatal dependência do álcool. Sua mensagem não se baseia em “contrapartida social”.
É certo que Fitzgerald era bastante conciso, reescrevia seus livros até atingir o mínimo, o essencial, mas criticar o filme por excessos não me parece lógico em tempos que, dizem, o bom cinema do nosso tempo são as longas séries de televisão, logo no pantanoso meio onde a exceção de linguiça, personagens rasos e tramas pegajosas que não agregam nada são pré-requisitos, e a necessidade de encontrar um vasto público amorfo e genérico encontra seu mais fértil habitat. É da natureza do meio, de sua lógica econômica, é o que lhe torna viável.
Interessante ver intelectuais afirmando que o cinema passou a ser o conto, e, a série de TV, o romance. Esses são, curiosamente, os detratores de filmes como O Grande Gatsby. Quando-se vê George Lucas e Steven Spielberg falando recentemente sobre “implosão do cinema” em evento na UsC, a Universidade do Sul da Califórnia (leia-se, melhor e mais cara escola de cinema do mundo), percebe-se que o formato de longa-metragem de alto orçamento, com ambições artísticas para exibição em salas de cinema (os theaters) pode estar ameaçado pelos motivos aqui já citados, e Gatsby certamente é um exemplo que justifica esse pensamento apocalíptico.
Mario Vargas Lhosa, em recente entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, disse temer que, com a migração dos livros para os tablets, a literatura caia em um declínio irreversível, que confunda-se literatura com banalidade. Na verdade este fenômeno já acontece – com cinema e literatura. E a internet, claro, esse imenso amalgama que não diferencia um clássico de literatura de um tuíte de celebridade, do grande cinema da foto de instagram, é oportunamente usada como o grande aliado desse intuito – até mesmo porque a internet em si não é algo ruim, pelo contrário. Mas é a regra: quando baixa-se o nível de informações e repertório de uma mensagem, mais pessoas podem aderir, mais se lucra. Lurhman quis trazer Gatsby para os novos tempos, fazer uma versão atual, condizente com o contexto presente. É um bom filme. Mas, dada a natureza e a soma do material que tinha em mãos, e o caráter suicida de sua nobre missão, o que teve de volta não poderia ser pior – nem diferente.
O que poderia dizer Fitzgerald do fracasso desse filme, se ressuscita-se? Tomo a liberdade de imaginar o que ele diria:
“Mas não foi o que eu disse no livro, que a ganância, a superficialidade, o oportunismo e o mau caratismo dos homens iriam triunfar sobre os verdadeiros sentimentos e as nobres intenções?”
Li o texto há algum tempo e esqueci de comentar aqui. Está excelente. Entendeu perfeitamente a essência da da obra com o estilo Lurhman.
Que crítica maravilhosa! Juliano Mion tem uma incrível capacidade de extrair a essência que os realizadores passam em seus filmes; de fato é sim um grande longa!
Uma boa crítica, não só sobre o filme O Grande Gatsby, como tbm sobre a atual conjuntura do cinema hollywoodiano (Tirando alguns errinhos de português, que obviamente não são o foco do meu comentário). Tenho medo da velocidade da informação que a internet (em tempos de experts sem conhecimento, críticos de tudo para tudo) proporciona, do puramente comercial e lucrativo, e que isso acabe indo para as telonas, como já está acontecendo, como o autor bem disse. Medo de que se deixe de admirar a arte do filme, a história por detrás...vida longa aos grandes diretores! Sobre o filme, realmente há uma diferença de dois tempos muito nítida; a primeira metade da segunda, mas ainda sim, um bom filme, belo, vívido, sensorial,com grandes atores, que te prende à história que está sendo contada. Este, afinal, deve ser o propósito primordial de um filme: fazer-nos esquecer da realidade (ainda que somente durante o tempo em que está sendo exibido) e viajar com a história e com os personagens!
O cinema de hoje realmente deixa muito a desejar, \"O Grande Gatsby\" é mais um filme que reforça a minha convicção.